O último aceno.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Nenhuma crônica, poema ou canção por mais romântica que seja define ou abarca a vida. O homem precisa de algo mais e o poeta, cronista e romancista sabem disso. Para não corroer tanto a alma humana esses ases da escrita, príncipes das nuvens, que possuem asas de gigantes que não os deixam caminharem, usam como meio de persuasão a crônica por possuir uma narração curta, em que o autor produz essencialmente para ser veiculada na imprensa, seja nas páginas de uma revista, seja nas páginas de um jornal. Ela possui uma finalidade utilitária e pré-determinada, ou seja: agradar aos leitores dentro de um espaço sempre igual e com a mesma localização e precisão, criando-se assim, no transcurso dos dias, noites ou semanas, uma familiaridade entre o autor e aqueles que a lêem. À vezes a crônica alcança o coração e alma das pessoas que a lê como se fosse dedicado a elas ou porque encontrou nas entrelinhas uma frase que lhes agradasse. Mas hão de se convir que nenhuma dessas palavras: crônicas, poesias e poemas, jamais deixaram de definir ou extinguir plenamente o fascínio e suas multifacetárias alegorias. Na verdade, nenhuma língua detém ou as possui por inteiro.

Fortemente relacionado com a música, beleza e arte, o poema tem as suas raízes históricas nas letras de acompanhamento de peças musicais. Até a idade média, os poemas eram cantados. Só depois o texto foi separado do acompanhamento musical. Tal como na música, o ritmo tem uma grande importância.

Considerando um olhar de lágrimas secas, observamos que pessoa alguma se apresenta ou se revela. No olhar de oceanos invertidos, tudo seca e tudo é deserto. Onde a sorte tem vários nomes, onde o azar não existe e isto é surreal. Tem certos momentos que navegamos sobre nós mesmos e nada nos contém. Nessa navegação escrota às vezes matamos a rima no afã de mostrar o inexplicável, e o que se mata, não se vela e nem se revela, é o lema do poeta. Ele não abre a janela do poema e deixa a crônica de portas trancadas, sem explicação alguma e isto é ruim, pois fica sem métrica, sem regra, sem conceito hermético; apenas inteira em si mesmo.

Mas como considerar e ou mesmo interpretar o gesto de alguém numa esquina que estendia a mão, acenando um adeus, com lenços brancos amparados pelo vento; tipo solitário que caminhava pela calçada, com um olhar perdido, silencioso, parecia observar alguém numa sacada do terceiro andar, as belezas que o circundava e suas inconstâncias que naquele instante só ele via. Um aceno que mostrava suas teimosias, suas perplexidades diante da rotina diária de quem passa sempre por ela. Ele parecia manusear uma enxada poética e a cada passo cavava sua cova, procurava estreitar as relações com aquela mulher e com seu mundo imaginário, enquanto sua alma se alargava num simples aceno para mim incógnito. A lâmina impregnada de letras entendia seu ofício de escriba, mas ele, a cada enxadada, não conseguia dizer seu próprio nome. Calava-se diante da cova, faltava-lhe a voz de outrora e via ali se esvaírem nas profundezas dela os versos. Bastou-lhe apenas aquele dia para tudo transmudar e ele não mais o reconheceria no espelho do cotidiano.

Era visível para mim que aquele desconhecido era um poeta. Sua encenação não era para qualquer um, nem era para obter fama, nem o dinheiro, nem a monotonia de dias iguais. Entendia que poderia ser assim: ele escrevia e vivia um amor que ele mesmo não conseguia viver. Acho que vivia saboreando os poemas e versos que colocava no papel que lhe alimentavam a alma. Acho que, pelo seu perfil, ele acenava para um amor verdadeiro, sonhava um amor real, um amor cheio de amor... O poeta é assim mesmo... Um sonhador! Pelo jeito, ele sabia que podia atracar em outros portos, fazer uma viajem interplanetária, buscar o impossível, mas sabia também que podia afundar na sua própria nave, mas teimoso, mesmo assim a fez, indo até o fim do universo, se é que ele tem fim. Mas o seu semblante demonstrava tristeza. Nem a lua ou as estrelas não o recepcionara como merecia, e lá das alturas, ainda conseguia ver uma casa, a sua moradia, mas que, talvez, nunca tivesse sido um verdadeiro lar. Restou-lhe então deixar as estrelas e se aconchegou no travesseiro celeste para recolher seus sonhos e agulhas invisíveis que acordaram seu cérebro para a realidade de um simples aceno.

Para quem queria tanto sem saber exatamente o que lhe fazia falta. Para quem andava tanto sem chegar a lugar algum. Para quem o poeta procuraria para curar suas feridas poéticas, bastava apenas um remédio qualquer, desde que amparado por aquele lenço branco que simbolizava amor e paz. Para quem ainda vive com seus cortes abertos que ainda sangra por dentro, aquela cena inusitada está apenas dizendo que nada o separará de seus laços afetivos.

Chove neste momento. Que bom! O dia está lindo lá fora! Mas algo me faz falta no aqui no meu recanto. Talvez o brilho do sol no vão quadriculado da janela, pois a noite se foi sem se despedir de mim. Talvez o ruído das turbinas do avião que atrasou o vôo, pois há horas não cumpre sua rota. Talvez não haja no topo do Morro da Serrinha vencedores nem perdedores, pois mudaram o trajeto de várias ruas e ninguém reclamou. Talvez exista um rei momo, cansado, desnudo, desconhecido, depois de uma folia de carnaval e que ainda possa estar celebrando sua solidão e abandono.

Como devia realmente interpretar aquele aceno que vi na esquina? Será que existe uma resposta convincente? Será um cronista que não convenceu ou um poeta que não versejou corretamente seu poema? Ou será uma canção sem ritmo cantada por um cantor sem voz? Curioso, olhei novamente pela fresta da janela e não o vi acenando mais. Será que era final de festa ou começara uma nova etapa de sua vida? Será que antes acenava apenas para quebrar o silêncio dentro de si mesmo, para alargarem nossas mentes e nos libertar para outras viagens? Agucei os olhos, vi pessoas se aglomerarem a poucos metros da esquina, no meio deles um corpo que jazia estirado no chão e ao lado, uma linda mulher. Escutei barulhos de sirenes e logo uma ambulância contornou a esquina. Ela o levou, mas deixou sobre a calçada o lenço e nele, o seu silêncio.



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