Calou-se uma voz

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Certo dia eu fui conversar com o amigo Matusalém, fumante inveterado, que bebia em demasia e conversava tanto que até espumava o canto da boca, esse fato nos fazia lembrar de certo político goiano. Era uma pessoa boníssima, alegre, cantava, tocava violão e era realmente bastante comunicativo, mas não posso negar que tinha dificuldade de conversar com ele, pois além do cheiro do cigarro, ele realmente falava demais. Eu o conhecia desde os tempos da jovem guarda, então, o que eu podia fazer? Conselho já tinha dado tantos! O jeito era continuar aguentando, a escutá-lo e nada mais. Podia-se dizer que ele era uma pessoa que "falava por mim" ao invés de se envolver com o meu curto palavreado. 

Como não sou de conversar muito, apenas o suficiente para o bom entendimento, esses tipos de pessoas parecem ter uma capacidade infalível para me encontrar, estando sozinho ou não. Posso estar relaxado num canto qualquer, conversando tranquilamente com as pessoas, mas em segundos, quando aparece esse tipo de gente mais pareço um animal assustado. É como estivesse diante de faróis de um carro. Fico embaraçado e perplexo diante do impecável monólogo dele ou deles, e preso, como se estivesse numa armadilha, incapaz de escapar e buscar a minha liberdade perdida.

Difícil é o tagarela entrar no ritmo meu, mas ocorre, visto que ele não se incomoda com preliminares sociais e ainda exibe uma incrível habilidade de escutar, mas quando volta a falar, o faz sem hesitação e até mesmo sem respirar. E isso às vezes a gente suporta em razão de um vasto estoque de informações que carrega e que contém muitas vezes temas favoritos nossos, principalmente, literatura, artes e até futebol. Interrompe-los ou conseguir um aparte jamais nós devemos fazer isso, pois eles têm suas estratégias. Não resistem momentaneamente, olham pra gente sorrateiramente enquanto murmuramos nossas tolices, e no momento em que vacilamos, eles continuam de onde pararam - como se a gente não tivesse falado nada. E o pior é que não falamos mesmo! O tagarela incessante não se distrai com tais irrelevâncias. Tudo que importa é transmitir o que está em sua mente.

Quando estou diante desses indivíduos gosto de observar com atenção a sua fala no afã de descobrir não apenas o que eles pensam e fazem, mas porque pensam e fazem. Para o tagarela uma coisa é certa, ele não é motivado pelo incentivo. Longe de incentivá-lo, eu e os meus leitores/vítimas tentamos é evitá-lo.

Alguns indivíduos estão envolvidos em seu próprio mundo - egocêntricos, simplesmente não estão interessados em nós ou em nossos sentimentos. Eles nunca aprenderam que o diálogo sadio e comunicação entre pessoas é uma troca de ideias, sentimentos e informações mútuas, todavia, durante minha observação descobri que essas pessoas são tímidas e até certo ponto nervosas e que suas conversas também bloqueiam o seu próprio diálogo, trazendo o medo da interação e a sua forma de tagarelice, nada mais é do que manter-nos à distância. Eles acham que são interessantes e que os outros gostam de ouvi-los. Eles acreditam que comunicação é entreter pessoas ou de lhes fornecer informações, nos deixam hipnotizados, sobrecarregando a nossa mente, inibindo o nosso pensamento, confundindo-nos com suas falas monotonamente compassadas.

Mas voltemos ao meu amigo Matusalém. Naquele dia observei que se encontrava bastante calado, para mim, anormal. Eu puxava conversa e nada. Notei que alguma coisa tinha acontecido. O seu semblante estava triste e os olhos avermelhados. Cabisbaixo, soltou um sorriso pálido, deixando de lado suas habilidades tradicionais de um grande comunicador, esvaiu-se a sua simpatia e como bom ator, escondia o que se passava com ele. Procurei fazer umas graças, contei piadinhas, mesmo sem graça, mas contei. Tentei ser tagarela igual a ele, mas nada funcionou. Pensava comigo mesmo: Será que naquele dia queria em que fui visitá-lo queria jogar um jogo diferente ou queria que eu o notasse de verdade. Percebi sim, mas apenas diferenças no seu modo olhar, de como se cuidava ou como fazia para escapar, de como passar-se por ofendido, magoar-se ou até, em certos momentos, recusar-se a perder o seu tempo com a gente. Mas a minha obrigação de amigo era lembrar-lhe de nossa amizade e que podia confiar, todavia, qual foi minha surpresa quando ao ler um diagnóstico jogado sobre uma mesa, simplesmente constatei que às vezes pertencemos a um bando de calados, que às vezes fingimos de cegos ou de surdos diante de certas situações. Então, sem ele perceber, eu peguei a pequena anotação médica e comecei a ler: “O câncer da língua, garganta e pulmão não são o mais frequente de todos, no entanto costuma manifestar-se em fumadores ativos e em pessoas que bebem bastante, e que com o passar dos anos, a sua presença dentro das estatísticas vão aumentando. É mais comum nos homens do que em mulheres, esta doença conta com um bom prognóstico de recuperação se for detectada a tempo, por isso torna-se importante saber quais são os primeiros sintomas de câncer da língua, especialmente se encontrar no grupo de risco.” Fiquei perplexo!

Sabemos que viver muito é somar perdas, é ficar inchado de coisas que nos vão deixando pelo caminho. Raramente, os que morrem assim, são os preferidos de Deus. Morrer assim é como um ícone romântico que deixa hígida, festiva a imagem do morto, de toda sua vida e do que poderia ter ocorrido durante sua existência. Todos os sonhos e realizações. No álbum de fotos do amigo era fácil observar o permanente sorriso celebrando a vida e a juventude. Era fácil ver no seu jeito alegre e a forma de como enfrentava o dia a dia, de como enfrentava tardes sem pôr do sol, ou de crepúsculos opacos, avermelhados ou cinzentos. Mas naquele instante além do seu álbum, observava mais que tudo, as defecções, as fugas e a crescente solidão de ver grupos de pessoas amigas nos deixando, assim como ele, indo para outra dimensão, enquanto outros, aqui na terra, se encolhendo a cada dia, como aconteceu com Matusalém, dias depois, num leito de hospital, onde ficamos sabendo de sua grave doença. Atônitos, ouvimos ali o último suspiro, calar-se uma voz e vimos o grande amigo tagarela deixar este mundo para sempre.


1 comentários:

  1. O mundo ficou mais silencioso, naturalmente. O silêncio pode ser de ouro, mas às vezes é um campo fértil para o isolamento e a solidão. Matusalém se conectava falando, pelo visto. É um forma de comunhão….

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