Teoricamente não descartei Descartes.

segunda-feira, 27 de junho de 2016


Ao iniciar este texto senti-me na obrigação de intitulá-lo desta maneira, ou em outras palavras, citando filósofo francês René Descartes que criou o princípio fundamental de toda a certeza racionalista. Ao manusear meus livros tive realmente a certeza de que não poderia descartar a sua teoria sintetizada na famosa frase “Penso, logo existo”. Parei por instantes enquanto o silêncio dominava meu pequeno escritório. Olhei para a estante, peguei alguns livros e artigos publicados no Diário da Manhã. O primeiro livro selecionado foi “Paixão e Morte em Serra Canastra”, e relendo parte do texto, deparei com personagens que nem mais lembrava os nomes, e depois, outro livro, “Uma Pedra no Caminho” e no meio da leitura, outras personagens se aproximaram e pareciam querer matar saudade. Sentia acenarem para mim e emocionado, fechei o livro. No canto da estante o “O Mistério do Morro do Além” espremido entre os livros “Espelho das Águas” e “Antes que o Sol Beije o Vão da Janela”.  Como se tratava de um fato inusitado eu tive que prender a respiração para tentar explicar aos personagens que a missão do escritor é fazer daquilo que escreve algo que as pessoas que os leem acreditem ser real. Disse-lhes que ao fazer da história de cada um deles ela seria o mais real possível, não obstante vivermos num mundo mágico onde a realidade se confunde com a ficção e que, por vezes, também acreditamos naquilo que a nossa imaginação dita. Mas, hão de entender que o escritor é escravo de seu próprio pensamento e este o rodeia o tempo todo, não importa se está com a mente cansada ou envolta por nefastos trabalhos laborais.  Ele pensa e muito. E quando pensa, nem vê as gotas de chuva se espatifar sobre o vidro da janela, e em tempo de inverno, nem o sol e a lua nascerem ou se pôr soberbos, nem os cânticos e alvoroços dos pássaros sobre as árvores, ou outro ruído qualquer, porque o pensamento interfere e injeta no escritor a sensibilidade, o faz viajar pelo mundo da imaginação, o faz prosear consigo mesmo e diante do computador, escrever sobre a beleza de tudo aquilo que circunda o seu universo. Se ele vê o nascer sol ou da lua, o pensamento incita-o, e poeticamente, descreve o encantamento de suas rotas, as suas subidas e descidas majestosas no horizonte; descreve com singeleza a mulher-mãe lavando roupas e pendurando no varal da vida suas angústias e incertezas; ameniza o latido do cão, o som dos veículos que passam rente a janela, e no compasso e descompasso dos sons, nem é capaz de ouvir a voz meiga de uma criança que brinca sossegado no jardim.

Mas, naquele dia, o pensamento resolveu fazer-me escravo de meus personagens e à medida que relia cada livro, foram chegando um a um ou uma a uma, e atônito, fiquei por instantes buscando palavras que pudesse amenizar aquele encontro inusitado entre eu e meus personagens.  Como retrucar meu pensamento e dizer a eles que tudo que escrevia era no afã de superar a ficção para tornar bem real o que escrevia, mesmo sendo trágico o final? Como dizer àqueles personagens que muitas vezes fiquei indeciso quando terminei de escrever e que tive que alterar o final, eliminar alguém, mas era vencido pela vaidade de ter conseguido atingir o clímax pretendido?

Mas, diante deles as palavras embaralhavam na minha mente. Não conseguia balbuciar nenhuma palavra. Só depois de horas lembro que balbuciei alguma coisa. Depois, falei, falei..., e ela, a minha personagem predileta estava ali quietinha me observando como se tivesse absorvido cada palavra e me perguntou: Então eu não sou real? Eu vivo apenas na sua imaginação e é por isso você me deixou sozinha naquele mundo inóspito? Novamente fico sem ação e tenho vontade de abraçá-la, mas, ela se recolhe num canto, uma ação momentânea que meus olhos aceitaram como se fosse um pedido de perdão.

Como explicar aos meus personagens diante do grande filósofo René Descartes e a vocês a minha evolução. Deixe-me, então, fazer um pequeno contraponto contando algumas histórias de minha geração que originou o grande movimento denominado de jovem guarda. Pertenci a uma geração que pode ser taxada de romântica, mas que se insurgiu contra a ditadura do excesso de consumo, contra uma rigidez de costumes, contra um autoritarismo dominante que aniquilava qualquer tentativa de criatividade, de experimentação, e o que dizer então de liberdade… O refrão em voga naquela época era “Faça amor, não faça a guerra”. Foi uma mudança radical. A moda de então estava de acordo com o fluir do corpo. O cabelo feito topete era endurecido com brilhantina e nem o vento o movia, as roupas de tergal e jeans, singulares, sugadas e coloridas, ficavam soltas, facilitavam os movimentos, como as calças “boca de sino” e colarinhos altos, era um show nas baladas e rock and roll.

Hoje, apesar de tudo o que se fale em termos de liberdade, o que vemos em todos os lugares são pessoas bem vestidas, homens e mulheres. Roupa curta bem colada no corpo amarrando os movimentos. Sapatos de plataforma, altíssimos, constituindo-se na freguesia-mor dos ortopedistas. E é absolutamente indispensável que tudo seja proveniente de grifes famosa. Os paradigmas que surgem são cambiantes. Em outros tempos, a dedicação a uma causa, estudo ou profissão, era um critério básico para o sucesso pessoal e profissional. O que se busca hoje é o exercício de certa “esperteza”, do suborno e das propinas que cortam atalhos… E ainda temos que agüentar políticos possuidores de imunidade parlamentar, mas denunciados também, e com o maior descaramento, defender uma Presidente comandante-chefe da corrupção diante das Câmaras de TV. Hoje percebemos uma dessacralização de tudo que a nossa geração julgou ou julga serem valores incontestáveis.  Tempos idos, o nosso espelho eram olhos amigos e amorosos em que cada pessoa podia se vir confirmada e aprovada em sua singularidade, sentindo-se tão mais perfeita quanto mais parecida com ela mesma.

Então, queridos personagens, me desculpem por manusear novamente os livros apenas esta noite, mas, neste encontro surreal, convido-os a virem comigo, e seguindo a antiga tradição, buscar a quietude, dar espaço para o mergulho imaginário e consultar à biblioteca virtual, a qual me facilitou com uso de senhas, guardarem meus escritos e seus nomes para a eternidade. Em meu subconsciente que embora só seja visitado em situações de crise, o pensamento estará lá, sempre, esperando com a porta aberta para levá-los ao encantamento do mundo da imaginação, pois, para quem sabe pensar tem consciência de si mesmo, ou se pensa, como disse o filósofo René Descartes, logo sabe, ou se pensa, logo terá consciência, se pensa, logo saberá algo certo, por isso, quando escrevo, sou forçado a pensar e se penso, logo existo.



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