Diante de um retrato pendurado na parede de moldura antiga, corroída pelo tempo, fiquei observando os cabelos grisalhos, presos no coque alto onde se destacava um rosto maltratado, mas, via-se logo que, mesmo antigo, se tratava de uma linda mulher, cujos olhos azuis pareciam perdidos na escuridão de seu próprio ser, envoltos pela pele vincada por pequenas rugas e a boca amarga travada para baixo, num desdém pelos sorrisos que já dera na vida. O seu semblante parecia querer retratar que sua vida fora apenas uma ilusão ou se era a corrosão de sua própria alma, do abandono de seus sonhos, do esquecimento de seus ideais ou de sua desistência da paixão. Para aqueles que conviveram com ela tempos idos sabiam que ela sempre trazia as maçãs do rosto coradas, os passos ágeis e os olhos arregalados que absorviam o mundo em sua totalidade. Ela era cheia de luz, uma alma inquieta, transbordante, vivaz.
Diziam que quando menina deslumbrava-se com a vida, e mesmo usando um vestido de cetim alcançando as canelas grossas corria pela terra seca, poeirenta, como se estivesse carregando uma alma de criança a tiracolo. Sonhava morar em uma cidade grande ou se ficasse em seu rincão, pelos menos casar-se com um príncipe de cabelos compridos que a levasse num cavalo branco, alado, e sob a luz do luar, amarem com loucura, sobre a verde relva que circundava o lago cheio de flores e árvores milenares que compunham aquele local aprazível.
Anos se passaram e lá estava eu de novo naquela fazenda e, sem tratar-se um sonho ou ilusão de ótica, fixei novamente meus olhos naquela moldura, agora nova, restaurada, e ao lado, outro quadro pendurado, onde se via uma paisagem, de outono, de um lugar qualquer, talvez imaginário e sobre o verde, uma cena inusitada: dois corpos estendidos sobre o capim verde, ela e o seu amado, que trajava uma calça grossa de algodão e camisa xadrez. Seus olhos castanhos pareciam voltados para o infinito e nos seus cabelos despontavam pequenas mechas brancas, enquanto ao longe, o sol descia soberbo no horizonte. A moldura indicava que ela tinha ido para outra dimensão juntamente com seu peão.
Naquele instante veio às minhas narinas o cheiro gostoso do feijão tropeiro que só ela sabia fazer, que travou a minha boca na emoção e no amargor que ela proporcionava quando também servia o café sem açúcar que costumava adoçar todas as manhãs. A saudade abateu-me sobre o peito e ritmou meu coração.
Cabisbaixo e com o pensamento alhures, sentei-me no banco de madeira do velho casarão e comecei a pensar. A cada instante jogava os pensamentos impuros para fora e armazenava os puros, tempo em que ia contemplando com os olhos cheios de amargura o cair da tarde e o filete de água límpida e cristalina que descia recém-nascida do alto de uma grota, entre a única mata nativa, cercada de pedregulhos, brejal e lírios, formando ao redor um campo florido e fresco, onde os ventos brincavam de montanha-russa com a plantação de girassol, com pendo dando, que se alastrava pela ribanceira até alcançar a parte mais alta do córrego. Incessante como os meus pensamentos, que iam e voltava na velocidade do vento, o pequeno rego passava ao lado da casa também descia serpenteando incansavelmente os terrenos cheios de declives, dando vida ao lugar e rumando para uma tênue caída numa pequena cachoeira. Indiferente a tudo, as águas, assim como eu, não víamos as horas passarem e tampouco tínhamos tempo para ouvir os pássaros cantarem no fundo do quintal.
O cheiro vindo da cozinha já não era tão convidativo, mas mesmo assim, em respeito a aquela guerreira todos saíram e, enfileirados, postaram-se ao redor do fogão à lenha, abastecendo os pratos com um delicioso angu de milho, arroz, feijão, frango ao molho pardo com pequi, receita deixada por aquela saudosa descendente de italiano de sangue quente Francesca Milena Montalvan, os quais eram servidos acompanhados de verduras frescas colhidas diariamente na horta plantada à beira do rego d’água.
A mistura, outra herança deixada, ficava por conta da carne de porco adormecida em grandes latas e submersa em gordura que garantia o sustento daquela numerosa prole durante meses. Um paladar inigualável. Como dizia um dos peões: “É comer com as mãos, chupar os ossos e lamber os “beiços”.
Enquanto saboreava o jantar, ouvia a sinfonia de pássaros, rãs, grilos, cigarras, corujas, vaga-lumes, formando uma orquestra rural de brilho, cores e sons que nos remetiam à tranqüilidade e à paz. Os últimos resquícios de sol, alaranjado, ainda penetravam pelo vão da janela iluminando o quadro fixado na parede, deixando- o colorido e mais belo, cujos raios se refletiam no rosto daquela mulher que deixou saudade emoldurada naquele quadro que parecia ter sido pintado por um ser imaginário vindo de outra dimensão.
Essa rotina rural fazia parte da vida daquela mulher que com o olhar meigo, mesmo na parede, parecia dominar aquele rincão, onde mesmo as horas demoravam a passar e os dias eram enormes, não se esmorecia diante das tarefas diárias que enfrentou durante sua existência, principalmente quando se via diante de um sol escaldante ou sob chuva fria.
Nos tempos idos, apesar das dificuldades, sentia-se feliz ao manejar a terra e ajudar na lida com o gado e talvez seja isto, além do amor a terra que compartilhava com seus entes querido, é que senti pairar naquele retrato o semblante de uma mulher guerreira que sempre procurou esconder sua dor e as incertezas que tinha em relação ao futuro e das adversidades que poderiam advir com o propósito de tirar a harmonia conjugal, o respeito mútuo, o amor e a paz que sempre reinou em seu lar. (minha humilde homenagem ao dia internacional da mulher).
Obrigada, lindo !
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