Passando por uma rua que findava num vale, vi uma casa sem número, construída num canto que quase ninguém notava. Lá dentro pairava um silêncio absoluto, profundo. Olhei para um pasto verde pouco à frente e parei. Com o semblante e boca travados, estacionei o carro e fiquei ali inerte, mudo, enquanto minha mente cobrava de mim uma mensagem bíblica que tinha ouvido na missa dedicada à família Bandico, afinal, era numerosa, unida, que naquele dia festejava seu 1.º Encontro. Na frente daquela casa avistei um jardim cheio de flores, cercado de um gradil e uma paliçada verde; e num canto, no meio da erva fresca, floria uma pequena margarida. O sol a aquecia com seus raios, e assim como às outras flores do jardim ela se desenvolvia minuto a minuto. Dizem que numa certa manhã apareceu do nada, inteiramente aberta, com suas pequenas pétalas brancas e brilhantes, e no meio delas, uma miniatura de sol rodeado de pétalas brancas, e somente na sofreguidão do calor solar e diante da impertinência de um beija-flor é que ela se inquietava.
Mas, mesmo assim, a pequena margarida estava feliz, embora não recebesse nenhuma gota de água. Enquanto as crianças passavam silenciosas, ela, sustentada por seu caule verde, apreciava a beleza da natureza e a bondade de Deus. Parecia-lhe que tudo o que sentia em silêncio o pequeno beija-flor exprimia na sua ansiedade, tentando bicar-lhe e tirar seus polens e ínfimos néctares. Ela olhava receosa aquela ágil ave que girava em torno de si na ansiedade de alcançar seu objetivo: o mel
Ficava injuriada, pois dentro do jardim havia uma quantidade de flores lindas, viçosas e aquele beija-flor parecia se encantar somente com ela; as outras flores se inflavam a fim de parecerem maiores do que as rosas; mas não é o tamanho que faz a flor. Elas brilhavam pela beleza de suas cores e se pavoneavam com pretensão; não se dignavam lançar um olhar sobre a pequena margarida ali no canto do jardim, mas, ela, dentro de sua humildade, ainda as admirava dizendo: Corno são belas! Mas, porque o beija-flor insiste somente em me bicar, me ferir e destruir minhas pétalas. Questionava. E, no mesmo instante, o veloz pássaro levantava seu voo, não rumo às outras flores, mas para a grama ao lado da pobre margarida, que, irada, não sabia mais o que fazer. O pássaro começou a girar novamente em volta dela com o zunido irritante de suas asas e ainda dizia: Mesmo sem o cheiro daquelas petulantes rosas, encantei foi com você florzinha de pétalas brancas!
Não se pode fazer uma ideia da bondade da pequena flor. O beija-flor a beijou com seu bico, girou freneticamente, depois subiu para o azul do céu levando em suas asas o branco pólen. As horas passaram e a margarida não conseguia refazer da sua emoção. Já estava gostando daquele infeliz. Sentiu-se um pouco envergonhada, mas orgulhosa. Olhou para as outras flores do jardim que foram desdenhadas por aquele pássaro. Sabia que elas tinham testemunhado a honra recebida e da qual que fora alvo dele. Elas deveriam compreender a justeza de sua alegria, mas as rosas estavam mais sérias do que antes e as suas pétalas vermelhas e curvadas para dentro exprimiam seus despeitos. Outras flores de somenos importância levantavam a cabeça com soberba. Que sorte da margaridinha elas não poderem falar! Teriam dito coisas bem desagradáveis.
Acordou e viu aproximar um menino portando uma enxada e logo começou a perfurar o chão em sua volta. A cada enxadada margarida tremia de medo. Ser arrancada dali significava perder a vida; e ela gostava tanto daquele espaço e por sorte, foi poupada com a chegada do jardineiro. O menino saiu correndo. E assim ela sobreviveu mais dia.
No final da tarde alguém de supetão, lhe mergulhou o bico. Era o irreverente beija-flor que fez um sinal amistoso e disse ao beijá-la: Você sim, pequena flor, não perecerá aqui! Ninguém vai lhe fazer nenhum mal e em troca vou adubar suas raízes. Você vai se fortalecer e cada uma de suas pétalas brancas rejuvenescerá, não terão mais o temível odor, e o perfume que sair do seu seio, será inebriante, e quando for levado pelo vento, aromatizarão todos os jardins de nossas existências.
O beija-flor foi aprisionado pelo menino e colocado numa gaiola. A noite chegou, veio o dia e anoiteceu novamente. Ninguém estava lá para levar alimento e água para o pobre pássaro. Então ele abriu suas belas asas sacudindo-as convulsivamente e fez ouvir uma pequena canção melancólica, fúnebre, vinda não sabe de onde. Sua cabecinha se inclinou para a flor e seu coração ferido de desejo e de dor parou de bater. A esse triste espetáculo, a margaridinha não pôde, como na véspera, fechar suas pétalas para dormir; e traspassada pela tristeza, também se curvou ao solo.
O menino apareceu dias depois e ao ver o pássaro morto, chorou copiosamente. Colocou o corpo do beija-flor numa caixa de sapato e o enterrou no jardim. Sobre o túmulo semeou pétalas brancas. Pobre margarida! Suas pétalas serviram de honrarias, mas, mesmo assim, despedaçada, estava feliz, pois ninguém, a não ser ela, sabia o quanto ele era importante naquele pequeno jardim. Passara a amá-lo ternamente.
Por incrível, lá dentro morava uma mulher de nome Margarida e o esposo com sobrenome Flores. Ela também possuía uma luz irradiante e Flores encontrou nela o sentimento da força inconteste de uma margarida-flor, uma mulher madura, boa esposa, boa filha, boa mãe, amiga e extremamente prestativa. Como aquela margarida que desfalecera por amor, ela também representava esse sentimento porque trazia o significado da inocência, da sensibilidade e da nobreza. Talvez, quando usava um vestido branco, transmitia a paz como aquela pequena margarida, e sem querer contrastar com o sobrenome Flores, que são multicores, eles hão de entender que precisavam de um jardim renovado, regados de amor, sobriedade, humildade, sabedoria e paz. E embasado nestes sentimentos não há jardim que feche as portas e nem flores e margaridas que murchem, pelo contrário, as portas de suas novas moradas ou quaisquer outras que venham construir, estarão sempre abertas e surgirão novas margaridas e flores enquanto souberem regar com amor os jardins de suas vidas.
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