Os migrantes

terça-feira, 7 de julho de 2015

Quantas vezes sentimos no coração a vontade férrea de voltar no tempo, reavaliar decisões, ou mudar de atitudes? Esta vontade pode aflorar-se quando estamos diante da felicidade, tristes ou decepcionados com alguma coisa. No que diz respeito aos amores deixados por nós migrantes, isso ganha um peso bem significativo, pois quem migra mesmo saindo de uma região inóspita nunca a esquece… Este modo de pensar pode ser estranho, mas não é, pois quando num final de tarde sentei-me naquele tronco, ainda bem conservado naquela praça, veio à minha memória momentos saudosos, gratificantes e até certo ponto inesquecíveis, e aos poucos, senti-os se desgrudando da minha massa cefálica, trazendo-me lembranças que a borracha do tempo não conseguiu apagar. Ao andar pelas ruas construídas de paralelepípedos, o que parecia esquecido, ia e voltava à minha mente na velocidade da luz, e sem pedir licença, soltava flashes impregnados delas, ora de momentos de alegria, ora de momentos de tristeza, ora de amores, ora de desamores, cujas imagens iam se tornando reais a cada passo, enquanto as que não eu conseguia recordar se debatia na região recôndita do meu cérebro de forma evasiva, surreal, abstrata, contraditória, confusa, que eu não conseguia compreender. Coisas que eu não conseguia lembrar, talvez porque não me interessasse tanto ou sentia que não passavam de idéias vagas que às vezes vinham de uma coisa que achava bonita, não sabia sua forma, não passava de um mero sonho e não condizia com a realidade em que vivia. Difícil é não cair em contradição ao tentar explicá-la agora, pois antevejo que é bobeira minha fazê-lo entender este detalhe nesta pequena folha de papel.

Já vivi cenas pitorescas que pareciam transitar do passado para o presente, mas todas em direção do futuro… Nasci numa fazendinha de meu avô à beira do Rio São Domingos dos Olhos D’água, e quando um dia resolvi retornar, alguém que eu conhecia perguntou: Mas quem é você? Eu te conheço? Será que minha fisionomia tinha mudado tanto e a dele também? Eu já estava com cabelos esbranquiçados, ele não, mas era bastante calvo e o rosto carcomido pelas intempéries do tempo. Era o presente se confrontando com passado. Éramos duas pessoas tentando esmiuçá-lo, desvendar o que passou e que agora estava presente ali a olho nu; que o encontro foi possível de se realizar, pois o passado passou, e naquele instante nada importava, estávamos perto demais para que não nos lembrássemos de nossos rostos, de nomes e apelidos e dos jeitos de moleques que fomos. Os nomes não se mudam somente os rostos e jeitos mudam, porque trazem rugas de tempo e lugares distantes.

Naquele rincão tudo parecia como antes, nada mudara. Terrenos ainda férteis se espalhavam e à beira da estrada ainda se podiam fazer cumprimentos, ouvirem conversas e recebermos abraços fraternos… O tempo que se foi me levou como levaram outras crianças que migraram com as quais eu brincava nas ribanceiras do Rio São Domingos e que hoje a gente não se conhece mais. Com elas ou com todas elas, era quase impossível não compartilhar das alegrias, das brincadeiras, dos jogos e das brigas ocorridas junto àquela areia esbranquiçada que escorou ali na beira do barranco, não seguiu seu caminho e ainda estava lá escurecida por tantos anos sem as brincadeiras de crianças.

Não só eu, mas quantas pessoas migraram ou migram de uma região para outra, mas nada importa agora mesmo sabendo que muitos migraram e somente alguns por questões financeiras não conseguiram retornar ao lugar de onde saíram. Eu fui e continuo um migrante. Ao voltar a minha bela Cidade dos Pomares, como em outros lugares em que vivi, foi possível encontrar gente que ainda dizia: Pensei que nunca mais voltaria a este lugar. Outras, porém, mesmo vendo a distância física se coadunar com outras distâncias, insistem, sonham em rever, cedo ou tarde, o lugar que deixou como eu fiz e faço sempre, mesmo sabendo que coisas nefastas possam estar inundando a minha cabeça para não festejar a minha volta. Mas a volta para alguns pode até se tornar uma utopia, literalmente. Eles podem até voltar para sempre, mas, definitivamente, ninguém retorna para o lugar que deixou, porque só pedaço de antes podem ser encontrados, os quais, se juntados, formam um novo lugar, que é o mesmo, mas que já é outro, mas que ainda é o mesmo… Outras pessoas, mesmo sem saber que reproduzem o mito do eterno retorno, voltam mortas, para morrer, quase sempre, para sempre. Uma morte lenta, bem antes de o coração bater pela última vez.

A dor da morte gela o peito do migrante quando diante dos olhos do passado se olha se pensa e se diz: Nunca o vi, ou não me lembro. Sim, ali, depois de morto, é possível morrer de novo, depois de uma morte há tempo anunciada: o dia da partida.

Se retornarem para sua cidade natal é claro que as ruas serão as mesmas, as casas, talvez, podem não ser, assim como a igreja, que podem estar cercadas por um muro eletrificado, até mesmo porque a cidade cresceu, aumentou a população, os amores, ódios, criminalidades, traições e separações. Nos bancos da praça ainda podem ser ouvidas as fofocas, como também saudações calorosas desejando bom dia, boa tarde e boa noite, que às vezes contrastam com o voo do beija-flor, com os cânticos dos pássaros que fazem das flores, jardins e das árvores o seu habitat.

Quando voltei a minha bela Cidade dos Pomares e sentei naquele tronco que há tempos fora jogado naquela praça, tentei recuperar imagens de um passado distante e ali na quietude da tarde, resolvi deixar de ser um migrante e acolhê-lo, abraçá-lo, e junto com o presente, apresentá-los ao meu futuro, mesmo que a ordem nem sempre fosse tão linear na migração, pois nela se mudam as pessoas, como também mudam os tempos e os lugares: tudo migra ou tudo muda junto, provocando bifurcações em tempos e espaços, em galhos que depois não se juntam mais a não ser quando toda a árvore tomba jogando sobre a terra frutos apodrecidos, folhas secas, galhos e troncos se espalham misturando-se ao chão… Vem o homem pega o tronco, corta-o junto com os galhos, entrelaça-os nos braços e os jogam no fogão à lenha para esquentar-se do frio, e mais tarde, poder cozinhar e servir aos amigos migrantes com esmero um saboroso arroz tropeiro.



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