Diante do
espelho de uma antiga penteadeira cuja moldura já estava corroída pelas traças
Dona Francisca Cabribó observava seus cabelos compridos já grisalhos, às vezes os soltava ou os prendia no coque alto; rosto carcomido pelas intempéries do tempo, olhos cansados envoltos pela pele
vincada por pequenas rugas; boca amarga travada para baixo, num desdém pelos
sorrisos que já dera na vida, então pergunta a si mesmo se toda a sua vida é uma
ilusão ou se é a corrosão de sua alma, do abandono de seus sonhos, do
esquecimento de seus ideais ou de sua desistência da paixão? Evitava olhar no espelho e não mais importava ver como estava sua face que, talvez, quisesse esconder dela mesmo. Mas sabia ser difícil. Ela se lembrava
sim, pois tudo fora diferente um dia e não tinha como esconder. Era cheia de energia, inquieta,
transbordante, vivaz. Cabelos sempre bem penteados e por mais que ela vivesse
em terra seca, árida e cercada por imensa caatinga, as maçãs do rosto estavam
sempre coradas; os passos ágeis e os olhos arregalados, também estavam sempre
prontos para absorver o mundo na sua totalidade. Num piscar de olhos vinha à
sua mente aquela menina deslumbrada com a vida, correndo pela terra poeirenta
de sol ardente como se estivesse carregando a tiracolo uma alma de criança.
Sempre sonhou em morar numa cidade grande e viver de tear, confeccionar
cobertas de puro algodão, bordar, tricotar, cujo ofício aprendera com a avó na
Fazenda Serra do Cipó; casar-se com um príncipe encantado de cabelos loiros e
montados num cavalo branco fossem para uma cidade grande e juntos, freqüentarem
museus e ver obras maravilhosas, gente diferente e comerem guloseimas nos cafés
oferecidos nos quiosques esparramados pela cidade, e à noite, se amarem no chão
com loucura, sobre os tapetes bordados por suas mãos e pelas mãos angelicais de
sua avó Ambrosina.
Quem não
traz consigo um sonho não realizado? Quem não traz lembranças agradáveis de
tempos de criança? Quem não se lembraria das brincadeiras de roda, amarelinha,
passa anel, peteca, pata-choca, pular corda e tantas outras invenções, pois
naquele tempo elas não tinham as dificuldades encontradas nos dias de hoje,
pois tudo está colocado à disposição, mas havia outras opções para se
divertirem? Pode ser saudosismo de dona Francisca, mas é importante voltar um
pouco no tempo e recordar as horas em que se divertiam, inclusive, jogando
conversa fora ou combinando traquinagem com as amigas.
Mas tudo
tem o seu tempo e certo dia, contrariando todo um sonho, conheceu um jovem peão
boiadeiro e logo se encantou com ele. Começaram a namorar. No começo mais
parecia empolgação, depois se tornou sério e em pouco tempo, veio à aprovação
da família. E, quando ela se deu conta já estava “amarrada” ao gajo,
sentindo-se, talvez, que não era aquela vida que queria para si, mas de nada
adiantava, pois já estava tudo consumado. Noivou-se. Sua família já olhava o
casal com expectativa. Enquanto os sinos badalavam Francisca pensou em desistir
e andou pela nave da igreja como o coração apertado. O jovem peão a esperava
sorrindo e ela não resistiu ao seu encanto e se entregou. Casou. Teve doze
filhos, netos e bisnetos. Grandes alegrias tiverem. Algumas tristezas também.
Um amor ora era quente, ora morno. Rotinas de dona de casa eram o normal. Suas
telas que foram trabalhadas pacientemente no tear iam se apinhando nas paredes
da sala. Linhas de várias cores iam formando os desenhos imaginados e
desenhados numa folha de papel. Os anos se passaram e certo dia, festivo,
passou frente ao espelho ainda cheirando coisa nova, moldura mantendo
resistência ao tempo, deu uma olhada de soslaio e se preparou para descer ao
salão já ornamentado, onde encontraria toda a sua família e o marido, exceto a
outra, a concubina, dia em que iria comemorar suas bodas de diamante, que ele
insistia e até se vangloriava em chamar de “bodas de cabra macho.” Talvez fosse
normal naquela região nordestina o homem convivesse com uma ou mais mulheres,
cuja razão se desconhece.
Ele estava
completando sessenta anos de casamento com Francisca Cabribó e noutra região
não muito longe, a sua concubina Saturnina Fricó e seus doze filhos, mesmo sem
sua presença, comemoravam também as bodas de diamante. Francisca Cabribó ficou
sabendo da concubinagem poucos dias depois do seu casamento, mas mesmo assim,
independentemente dessa famigerada convivência conjugal dupla de seu marido,
procurou manter-se sóbria, feliz e suspirava todos os dias, pensando de como
seria sua vida se tivesse feito outra escolha. Antes de descer a pequena escada
do casarão feito de assoalho de tábuas e paredes de puro adobe olhou para um
dos seus quadros pendurados na parede onde se via bordado uma paisagem
primaveril, que ela extraíra de uma região que jamais conhecera e de outro
lado, outro quadro, com uma foto, um peão, mas sem o cavalo branco, estava
junto com um homem de olhos azuis, calvo, sentados num banco de madeira olhando
os filhos brincar ao entardecer. Na foto tirada há décadas por um lambe-lambe,
não era o tão sonhado príncipe encantado. Era o seu marido Manoel Justino.
Todavia, como o amor falou mais alto, olhou mais uma vez e sua boca travou-se
na emoção e no amargor que não vinha do café com açúcar que costumava adoçar
todas as manhãs. Deu um leve sorriso e prosseguiu...
Sentado
num confortável banco de madeira Manoel Justino jogava conversa fora com os
filhos e amigos, mas os seus olhos não deixavam de contemplar o cair da tarde
no pequeno sítio Mandruvá no interior do Ceará. Pela ribanceira um filete de
água cristalina descia serpenteando entre os declives da mata nativa, cercada
de pedregulhos, brejal e coqueiros, dando vida ao local e pouco adiante, cair
em cachoeira, e por onde passava ia transformando em campos verdejantes,
fazendo os ventos brincarem de montanha-russa e roçar os pés de mandioca e
milho que se alastravam pela ribanceira até alcançar a parte do córrego
Mandruvá, nome que deu origem ao sítio. Indiferente a tudo, as águas não viam
as horas passar e tampouco tinha tempo para parar e ouvir as prosas contadas
por Manoel Justino.
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