Bodas de "cabra macho".

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Diante do espelho de uma antiga penteadeira cuja moldura já estava corroída pelas traças Dona Francisca Cabribó observava seus cabelos compridos já grisalhos, às vezes os soltava ou os prendia no coque alto; rosto carcomido pelas intempéries do tempo, olhos cansados envoltos pela pele vincada por pequenas rugas; boca amarga travada para baixo, num desdém pelos sorrisos que já dera na vida, então pergunta a si mesmo se toda a sua vida é uma ilusão ou se é a corrosão de sua alma, do abandono de seus sonhos, do esquecimento de seus ideais ou de sua desistência da paixão? Evitava olhar no espelho e não mais importava ver como estava sua face que, talvez, quisesse esconder dela mesmo. Mas sabia ser difícil. Ela se lembrava sim, pois tudo fora diferente um dia e não tinha como esconder. Era cheia de energia, inquieta, transbordante, vivaz. Cabelos sempre bem penteados e por mais que ela vivesse em terra seca, árida e cercada por imensa caatinga, as maçãs do rosto estavam sempre coradas; os passos ágeis e os olhos arregalados, também estavam sempre prontos para absorver o mundo na sua totalidade. Num piscar de olhos vinha à sua mente aquela menina deslumbrada com a vida, correndo pela terra poeirenta de sol ardente como se estivesse carregando a tiracolo uma alma de criança. Sempre sonhou em morar numa cidade grande e viver de tear, confeccionar cobertas de puro algodão, bordar, tricotar, cujo ofício aprendera com a avó na Fazenda Serra do Cipó; casar-se com um príncipe encantado de cabelos loiros e montados num cavalo branco fossem para uma cidade grande e juntos, freqüentarem museus e ver obras maravilhosas, gente diferente e comerem guloseimas nos cafés oferecidos nos quiosques esparramados pela cidade, e à noite, se amarem no chão com loucura, sobre os tapetes bordados por suas mãos e pelas mãos angelicais de sua avó Ambrosina.

Quem não traz consigo um sonho não realizado? Quem não traz lembranças agradáveis de tempos de criança? Quem não se lembraria das brincadeiras de roda, amarelinha, passa anel, peteca, pata-choca, pular corda e tantas outras invenções, pois naquele tempo elas não tinham as dificuldades encontradas nos dias de hoje, pois tudo está colocado à disposição, mas havia outras opções para se divertirem? Pode ser saudosismo de dona Francisca, mas é importante voltar um pouco no tempo e recordar as horas em que se divertiam, inclusive, jogando conversa fora ou combinando traquinagem com as amigas.

Mas tudo tem o seu tempo e certo dia, contrariando todo um sonho, conheceu um jovem peão boiadeiro e logo se encantou com ele. Começaram a namorar. No começo mais parecia empolgação, depois se tornou sério e em pouco tempo, veio à aprovação da família. E, quando ela se deu conta já estava “amarrada” ao gajo, sentindo-se, talvez, que não era aquela vida que queria para si, mas de nada adiantava, pois já estava tudo consumado. Noivou-se. Sua família já olhava o casal com expectativa. Enquanto os sinos badalavam Francisca pensou em desistir e andou pela nave da igreja como o coração apertado. O jovem peão a esperava sorrindo e ela não resistiu ao seu encanto e se entregou. Casou. Teve doze filhos, netos e bisnetos. Grandes alegrias tiverem. Algumas tristezas também. Um amor ora era quente, ora morno. Rotinas de dona de casa eram o normal. Suas telas que foram trabalhadas pacientemente no tear iam se apinhando nas paredes da sala. Linhas de várias cores iam formando os desenhos imaginados e desenhados numa folha de papel. Os anos se passaram e certo dia, festivo, passou frente ao espelho ainda cheirando coisa nova, moldura mantendo resistência ao tempo, deu uma olhada de soslaio e se preparou para descer ao salão já ornamentado, onde encontraria toda a sua família e o marido, exceto a outra, a concubina, dia em que iria comemorar suas bodas de diamante, que ele insistia e até se vangloriava em chamar de “bodas de cabra macho.” Talvez fosse normal naquela região nordestina o homem convivesse com uma ou mais mulheres, cuja razão se desconhece.

Ele estava completando sessenta anos de casamento com Francisca Cabribó e noutra região não muito longe, a sua concubina Saturnina Fricó e seus doze filhos, mesmo sem sua presença, comemoravam também as bodas de diamante. Francisca Cabribó ficou sabendo da concubinagem poucos dias depois do seu casamento, mas mesmo assim, independentemente dessa famigerada convivência conjugal dupla de seu marido, procurou manter-se sóbria, feliz e suspirava todos os dias, pensando de como seria sua vida se tivesse feito outra escolha. Antes de descer a pequena escada do casarão feito de assoalho de tábuas e paredes de puro adobe olhou para um dos seus quadros pendurados na parede onde se via bordado uma paisagem primaveril, que ela extraíra de uma região que jamais conhecera e de outro lado, outro quadro, com uma foto, um peão, mas sem o cavalo branco, estava junto com um homem de olhos azuis, calvo, sentados num banco de madeira olhando os filhos brincar ao entardecer. Na foto tirada há décadas por um lambe-lambe, não era o tão sonhado príncipe encantado. Era o seu marido Manoel Justino. Todavia, como o amor falou mais alto, olhou mais uma vez e sua boca travou-se na emoção e no amargor que não vinha do café com açúcar que costumava adoçar todas as manhãs. Deu um leve sorriso e prosseguiu...

Sentado num confortável banco de madeira Manoel Justino jogava conversa fora com os filhos e amigos, mas os seus olhos não deixavam de contemplar o cair da tarde no pequeno sítio Mandruvá no interior do Ceará. Pela ribanceira um filete de água cristalina descia serpenteando entre os declives da mata nativa, cercada de pedregulhos, brejal e coqueiros, dando vida ao local e pouco adiante, cair em cachoeira, e por onde passava ia transformando em campos verdejantes, fazendo os ventos brincarem de montanha-russa e roçar os pés de mandioca e milho que se alastravam pela ribanceira até alcançar a parte do córrego Mandruvá, nome que deu origem ao sítio. Indiferente a tudo, as águas não viam as horas passar e tampouco tinha tempo para parar e ouvir as prosas contadas por Manoel Justino.



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