O ano de 2016 se foi e eu sobrevivi...

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Quando nasci, de forma irônica, a parteira que me ajudou a vir ao mundo, devia ser uma distraída, mas, de certo modo, possuidora de um espírito crítico iluminado, pois disse no momento que nasci que eu era bonitão. Nascia mais um aquariano. Cresci sem bolo, sem vela de aniversário, sem pedidos, sem brinquedos e durante muito tempo o travesseiro foi meu melhor amigo. Ele parecia triste também. Aprendi a conversar com ele e dizer a verdade. Mentir não é coisa minha. Sem sono passei muitas noites contando carneirinhos e no mundo dos sonhos me tornei um dos maiores produtores desses animais, que guardava com carinho nos currais da vida que construía a cada sonho. Tinha certas noites que contava de três em três dada à quantidade que se acumulava nas minhas insônias. Quando conseguia dormir, doía, assim como a vida. Demorei a gostar de viver e tinha uma tristeza que me visitava até mesmo nos dias de alegria. Por conta disso, aprendi a sorrir com economia, mas quando me permitia sorrir, sorria com vontade. Era pequeno demais para entender a vida e compreensível os fantasmas não me perseguirem e não quererem me adotar.

Ainda pequeno já morando em Goiânia, saía para trabalhar com uma caixa de engraxar sapatos. Morava no Setor Ferroviário e quantas vezes eu passei por caminhos rodeados por imensos matagais onde até fazia necessidades fisiológicas. Toda vez que passava pelo colchete de arame de minha casa ou na roleta da Estação da Estrada de Ferro, nem percebia a tristeza fazer sombra no meu sol. Ele, antes de entregar a noite à lua, me ensinava o valor da liberdade, da honradez e honestidade. Desde pequeno, era viciado em livros infantis, gibi, revistas em quadrinhos e em certos momentos eu parecia fugir das galés. Cada remada nas páginas da vida, mais gibis, mais livros, mais revistas. Em cada um ou uma, descobria continentes, astros, ídolos, atores, autores, heróis, gentes diferentes, importantes que me faziam sonhar. Aprendi a conhecer os oceanos, a amar o mundo e achar atalhos para o coração sem me tornar moleque ou escravo de ninguém. No meu primeiro livro hoje já corroído pelas intempéries do tempo, tentei construir nele um sonho, sem saber que tinha, em seguida, outros, que por mais singelos que foram, sei que ensinaram pessoas a gostarem de leitura e poesia. Eu gostava e gosto de escrever, divulgar e botar fogo no pavio para incendiar mentes preguiçosas. E escrevendo achei a fórmula de sonhar, de voltar a sorrir no lugar que me fazia chorar. Tem dia que tudo é poesia. Engraçado, de tanto escrever e tentar levar mensagens a cada um, indistintamente, acabo fazendo essas pessoas felizes. Certo dia estava sorrindo distraidamente e uma pessoa me perguntou por quê? Naquele dia fiquei sem entender, agora eu sei. O amor de minha mulher, dos filhos, noras, genro, netos e netas me deixam feliz. Dificilmente a gente se dá conta do sorriso de uma criança, do voo bisonho de uma garça ou da graça de uma borboleta, do perfume de uma flor, do canto de um pássaro, ou do doce de uma fruta qualquer; não percebemos a perfeição, o espírito revolucionário e aventureiro da juventude, quando todas as utopias eram possíveis assim como maravilhosas.
Poucos dias atrás, com uma caixa de engraxate pendurada no ombro, um jovem cruzou a rua e veio em minha direção dizendo:
- Não sei se o doutor lembra-se de mim, mas quando estive lá perto de sua casa e ouviram umas pessoas me chamarem “Ô da graxa, ô engravatado!”, para diferenciar de outro menino que não se vestia alinhado assim como eu, mesmo sendo também engraxate.

O engraxate era moreno, alto e forte. Para ser sincero, lembrava dele sim e como não se lembrar de sua forma alinhada de se vestir, pelo menos ficava claro de onde eu o conhecia. Lembrava também que o tinha tirado da prisão com um simples habeas corpus e pagamento de uma pequena fiança. Era réu primário. Na saída da Delegacia de Polícia um policial veio com um sorriso sisudo, lhe entregou uma caixa de engraxar como presente, mas o repreendeu, mas de forma carinhosa. E como valeu a repreensão!

Para refrescar a memória dele perguntei: Já visitou a cadeia novamente? Ele respondeu:
- Deus me livre, agora sou trabalhador com muito orgulho e graças ao senhor e aquele policial.
- E dá para viver engraxando sapato?
- Sim. Saio de casa bem de manhã e só retorno à noite e tenho muitos fregueses. Dá para tirar uma boa grana. Acho que depois que comecei a vestir assim e usando gravata o povo pega mais confiança. Ganho o suficiente para ajudar minha mãe nas despesas de casa e pagar o aluguel de um barraco no Setor Perim. Juquinha, com a caixa de engraxar pendurado nos ombros disse ainda percorria de dez a quinze quilômetros por dia no encalço da clientela:
- Procuro passar em lugar que tem homem parado: ponto de táxi, porta de bar, restaurante com fila de espera, praça com aglomeração de aposentado. Cobro de acordo com a aparência do cidadão.

 Pelo que fiquei sabendo, Juquinha foi aluno comportado até aos dez anos, mas infelizmente perdeu seu pai e aí tudo se desabou. Passou a distribuir panfletas nas ruas e avenidas de Goiânia, e foi aí que pegou gosto pelo dinheiro, mas também se “enrolar” com meliantes que infestavam as ruas da cidade, conhecendo a maconha, para desgosto da mãe que prestava serviços domésticos em residências. Um dia, o primo decidiu mudar de ramo e disse a Juquinha que não se conformava com aquela ninharia que ganhava com a distribuição de panfletos; tinha nascido para uma vida melhor. Levantou a camisa e exibiu o revólver no cinto. "Vem comigo, é apontar a arma e pegar o dinheiro."

Juquinha não tinha coragem, pois dois de seus amigos de infância que também eram engraxates haviam acabado de morrer num tiroteio na Vila Nova. Mas, outro menino mais velho insistiu:
- Eu enquadro as vítimas e você recolhe o dinheiro e os objetos de valor. É só ficar de cabisbaixo pra ninguém te reconhecer mais tarde. Não requer prática nem tampouco habilidade.
Na primeira vez, quando assaltaram uma loja na periferia da cidade, tudo se passou como o primo previra. Na partilha, couberam R$ 500 reais para cada um. Juquinha nunca tinha visto tanto dinheiro junto. O bolso inchou de notas. Comprou uma calça jeans, uma camisa gola pólo, e para sua mãe uma blusa. Num dia torrou todo o dinheiro roubado. Aos 12 anos foi capturado e lavado para a FEBEM. Fugiu, todavia, mais esperto e com novas amizades. Juntou-se ao inseparável primo e formaram uma quadrilha. Meses mais tarde, o primo foi morto por justiceiros a serviço dos comerciantes da Vila Concórdia.

Certa noite, Juquinha e dois comparsas assaltaram uma loja no centro da cidade e saíram em desabalada carreira, mas poucas horas depois foram cercados por duas viaturas de polícia. Os policiais gritaram para que jogassem as armas no chão e saíssem com as mãos na cabeça. Pensaram em reagir, mas prevaleceu o bom senso do finado primo Anselmo, mais conhecido como cabeção. Era o mais experiente da turma. Disse que se eles atirassem morriam no ato: eram três jovens contra oito policiais. Preso em flagrante Juquinha, que era menor de idade, foi levado para a Delegacia de Menores, mas acabou solto graças a minha experiência como advogado e que me responsabilizaria por ele. Nada mal para quem havia praticado mais de trinta assaltos, entretanto, na cadeia, adotou uma atitude humilde, estratégia à qual atribui a tal sobrevivência e o querer mudar de vida. Os outros que tinham fama de bandidos perigosos, sangue nos olhos, só um está vivo.

Com disso acima quando Juquinha foi libertado o policial lhe entregou a caixa de engraxar sapatos, senti que sua fisionomia realmente mudou para o bem e jurou pra mim nunca mais por os pés naquela Delegacia. Assim, dias depois, naquele encontro casual perto de minha residência perguntei-lhe se era mais feliz engraxando sapatos, e ele, com jeito maroto de quem sobreviveu ao mundo do crime, respondeu com um sorriso:
- Não tem nem comparação, doutor. Sabe o que é viver com medo? Hoje vivo sem ele. Qualquer veiculo policial imagino serem os justiceiros chegando! Imagino-me também entrando numa padaria para pedir uma média com pão e manteiga e não ter vergonha de sentar no banquinho e encarar as atendentes. Imagina-me doutor, agora de camisa branca e gravata. Estás diante de um campeão de vendas de uma loja de calçados... Posso dizer que eu venci e sobrevivi e sei também que o senhor foi engraxate como eu e venceu e sobreviveu a muitas batalhas durante sua existência... Olhei fixamente no rosto do elegante Juquinha cujos olhos já lacrimejavam, disse-lhe: Verdade, o ano de 2017 chegou e posso lhe afirmar que você me surpreendeu, tornou-se um vencedor como eu e sobreviveu aos percalços que a vida nos impôs.


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