A chuva caía torrencialmente. A água alagava ruas, avenidas e subia assustadoramente levando consigo tudo que encontrava pela frente. A TV mostrava, boiando sobre as águas, entulhos, sacos de lixo, latas, garrafas, tocos de cigarro, coco, plásticos e papéis que protagonizavam cenas grotescas de descasos da população e do serviço público. Outras cenas, mais horripilantes, o lixo misturado com lama deslizava dos morros em face da chuva intermitente, ia soterrando e matando gente indefesa; destruindo morros, barracos, ruas, avenidas, praças e carros sem piedade ou dó. O lixão amontoado nos morros e os lixos do lixo deixados nas ruas e calçadas pelo homem partiam sobre as águas sem deixar rastros entupindo as bocas de lobo.
Hoje, passado o período chuvoso o governo que foi negligente contabiliza os mortos retirados dos labirintos enlameados, insistindo em dizer que a culpa foi do temporal e que tudo não passou de um devaneio, de um momento de fragilidade, cujas ações e gestos o administrador público foi surpreendido pelo seu próprio umbigo quando lá apareceu para assistir in loco o sofrimento de um pai que tentava salvar o seu filho que se encontrava encoberto por um lamaçal e pedia socorro, mas, tudo fora em vão, pois, em segundos, novo deslizamento de terra veio abaixo cobrindo de vez aquele corpo juvenil. A poucos metros dali um outdoor dava destaque a uma publicidade colossal do governo falando de urbanização, moradia e melhoria do sistema de escoamento de águas pluviais e esgotos.
Naquele dia fatídico antes de escurecer vi a lua se despontar no horizonte e clarear o breu que tomava conta do Morro do Bumba e aí, abriu-se novamente as cortinas do espetáculo. A TV continuava noticiando e mostrando os horrores de uma catástrofe já esperada por muitos especialistas e que emocionou uma nação inteira. Enfrentando as adversidades do tempo pessoas que perderam seus barracos e entes queridos, mas ainda cheias de esperança, hoje procuram como reconstruir suas vidas partindo de fragmentos toscos, mas, rígido e sublimado de um mosaico multicolor. Usando de frases incompletas, intenções escondidas, cuja sorte é jogada aos astros distraídos que se evaporam e tentam fazer acreditar que tudo não passou de um sonho, de um delírio, de um momento de loucura incompreensível, cujas lágrimas também eram levadas pelos ventos e despejadas como lixos nas bocas de lobo da vida.
Sentado diante da televisão pensei e repensei sobre inúmeras fórmulas de esquecer tudo o que tinha visto naquele dia, mas, preso nas armadilhas do tempo e nos percalços da vida, nunca imaginava que depois das catástrofes ocorridas no Haiti e Chile, iria ver a repetição daquelas cenas. Mas, infelizmente, continuou chovendo torrencialmente durante vários dias e os barracos localizados nos Morros do Bumba e Prazeres construídos sobre um lixão, sem flores no seu trajeto, de um entardecer melancólico, cercado de cores escuras, fantasmas e ruínas não resistiram e despencaram morro abaixo.
Hoje, sem moradia, sem documentos, conta em banco ou carta de alforria, partem agora rumo a um mundo incógnito em busca de sobrevivência e esperançosos de que se o dia seguinte não fosse nascer, ou se não existisse nada para acreditar, ainda assim, têm a certeza de que continuarão levando em seus pensamentos as rajadas de vida, como fazem as bocas de lobo para sobreviver aos lixos do lixo ou o como vento faz para beijar a noite escura esperando um novo amanhecer.
VANDERLAN DOMINGOS DE SOUZA. Advogado e Escritor. É membro da UBE- União Brasileira de Escritores. E-mail: vdelon@hotmail.com
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