O psicólogo, o poema e a sacada sem divã.

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Moro em um apartamento com uma sacada virada para uma selva de prédios. Não vejo árvores, nem animais, nada, apenas janelas semi-abertas e pessoas debruçadas à espera de um novo dia. O sol passa iluminando a sacada meio de soslaio, parece desconfiado, mas mesmo assim eu o contemplo, seja de manhã ou à tarde quando se esconde detrás dos prédios. Moro em uma rua estreita onde passam poucos carros, mas, infelizmente, ela é paralela a uma enorme avenida de onde vêm barulhos ensurdecedores de roncos de motores e buzinas. Levanto da cama quando “me dá na telha” ou quando a secretária do lar assovia anunciando que o café está pronto. Espreguiço-me até estalar os ossos, mas antes de entrar na copa passo pela sacada e por incrível que pareça, e que não é normal, vejo um bando de pássaros fazendo voos rasantes com uma precisão milimétrica incrível e nem trombavam entre si quando faziam suas curvas mirabolantes.

Independentemente da “selva de pedras” o que a gente vê lá de cima é lindo e permite a quem vive perto dela desfrutar de alguns graus de calor, talvez, menos que no resto da cidade, pois o vento, às alturas, passa úmido trazendo de longe o cheiro das flores que insistem em brotar em algum jardim. E um pouco de umidade a mais é que precisamos para diminuir a secura do tempo. Os observadores de pássaros me instruíram sobre a grande variedade deles que vivem às voltas dos prédios, principalmente os beija-flores. O que mais gosto de ver é uma garça solitária que jamais abandonam seus filhotes, mas ela, num voo bisonho continua lá nas alturas, refletindo sua brancura e solidão sobre a rua coberta pelo manto negro do asfalto. Aquela garça que outrora matou um sonho meu insiste em voar ali e se recusa a retornar ao seu habitat, o bosque que não fica distante, mas porque prefere brincar com meus sentimentos, pois ela sabe que ninguém ama o lago que se formou dentro do bosque mais do que eu.

Ao lado do meu apartamento mora um psicólogo, ou que se apresentava como tal e tinha boa persuasão, todavia, eu não estava delirando, nem neurótico e nem psicótico. O mal que cometi foi lhe ter chamado até a sacada do meu apartamento e pedir-lhe pra dar opinião sobre uma música que tinha escrito para minha irmã Rosa, a mais velha dos irmãos e que a considero como mãe. Entreguei-lhe a letra. Dias depois, durante uma caminhada matutina, entregou-me um papel, mas não era um papel comum e nenhum comentário sobre a letra. Era um tipo de receita. Coloquei no bolso e ao chegar ao apartamento comecei a ler uma mistura entre resultado de consulta e estrofes musicais diferentes das minhas. Desenrolei o papel e comecei a ler: “mãe Rosa não sou poeta, psicanalista, nem trovador, mas veja quanta beleza e essas palavras trazem amor: Mãe Rosa rima com ternura, que brota do fundo da alma, e com sua voz tão meiga e pura, os devaneios psicóticos nos acalmam”... Depois de ler o restante, que mais parecia uma bula, senti que a letra ficou misturada e perdida nos labirintos da massa cefálica do dito psicólogo, do meu, restando-me, então, retirar o real texto poético que tinha jogado no cesto de lixo.

Diferente de outras análises feitas por psicanalistas, mesmo sabendo de sua atenção para comigo, não entendi o que ele prescreveu e ainda notei que não havia ninguém ali ao meu lado, apenas o meu violão, a vastidão da natureza e o modo de como eu enxergava o mundo que era diferente daquele descrito por psicanalistas. Por outro lado nem existia divã ali na sacada, apenas um papel sobre uma mesinha, e assim, agindo como uma pessoa normal e notando que nem existia o tal psicanalista, me questionei: Será que eu estava psicótico, vivendo num mundo onde a realidade é outra?

Felizmente não era. Estava vivendo num mundo real, tanta realidade que ao olhar pra baixo pude ver uma criança chorar e pedir comida à sua mãe que não tinha nada pra lhe dar. Ela insistia, insistia, e faminta a criança dormiu à sombra de uma árvore pra esquecer a fome. E foi ai que pensei: Quiçá um dia as crônicas e poemas que escrevo servirão para algo, pelo menos alcançar o coração de alguém. Então, voltei à mesinha e peguei o papelzinho que lá colocara, e não era a receita do psicólogo, mas sim, uma pequena parte do poema que escrevi para minha irmã: “Irmã Rosa que viveu dias de outono que ora vêm vagos e choram... Irmã Rosa que vê crisântemos roxos e estes se descoram, e dentre os murmúrios dolentes de segredo, eu te abraço e te beijo”. Quando terminei de ler, simplesmente acordei! Tudo era apenas um sonho.



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