Moro em um
apartamento com uma sacada virada para uma selva de prédios. Não vejo árvores,
nem animais, nada, apenas janelas semi-abertas e pessoas debruçadas à espera de
um novo dia. O sol passa iluminando a sacada meio de soslaio, parece
desconfiado, mas mesmo assim eu o contemplo, seja de manhã ou à tarde quando se
esconde detrás dos prédios. Moro em uma rua estreita onde passam poucos carros,
mas, infelizmente, ela é paralela a uma enorme avenida de onde vêm barulhos
ensurdecedores de roncos de motores e buzinas. Levanto da cama quando “me dá na
telha” ou quando a secretária do lar assovia anunciando que o café está pronto.
Espreguiço-me até estalar os ossos, mas antes de entrar na copa passo pela
sacada e por incrível que pareça, e que não é normal, vejo um bando de pássaros
fazendo voos rasantes com uma precisão milimétrica incrível e nem trombavam
entre si quando faziam suas curvas mirabolantes.
Independentemente
da “selva de pedras” o que a gente vê lá de cima é lindo e permite a quem vive
perto dela desfrutar de alguns graus de calor, talvez, menos que no resto da
cidade, pois o vento, às alturas, passa úmido trazendo de longe o cheiro das
flores que insistem em brotar em algum jardim. E um pouco de umidade a mais é
que precisamos para diminuir a secura do tempo. Os observadores de pássaros me
instruíram sobre a grande variedade deles que vivem às voltas dos prédios,
principalmente os beija-flores. O que mais gosto de ver é uma garça solitária
que jamais abandonam seus filhotes, mas ela, num voo bisonho continua lá nas
alturas, refletindo sua brancura e solidão sobre a rua coberta pelo manto negro
do asfalto. Aquela garça que outrora matou um sonho meu insiste em voar ali e
se recusa a retornar ao seu habitat, o bosque que não fica distante, mas porque
prefere brincar com meus sentimentos, pois ela sabe que ninguém ama o lago que
se formou dentro do bosque mais do que eu.
Ao lado do
meu apartamento mora um psicólogo, ou que se apresentava como tal e tinha
boa persuasão, todavia, eu não estava delirando, nem neurótico e nem psicótico. O mal que cometi
foi lhe ter chamado até a sacada do meu apartamento e pedir-lhe pra dar opinião sobre uma música que tinha escrito para minha irmã Rosa, a mais velha dos
irmãos e que a considero como mãe. Entreguei-lhe a letra. Dias depois, durante
uma caminhada matutina, entregou-me um papel, mas não era um papel comum e
nenhum comentário sobre a letra. Era um tipo de receita. Coloquei no bolso e ao
chegar ao apartamento comecei a ler uma mistura entre resultado de consulta e
estrofes musicais diferentes das minhas. Desenrolei o papel e comecei a ler:
“mãe Rosa não sou poeta, psicanalista, nem trovador,
mas veja quanta beleza e essas palavras trazem amor: Mãe Rosa rima com ternura,
que brota do fundo da alma, e com sua voz tão meiga e pura, os devaneios
psicóticos nos acalmam”... Depois de ler o restante, que mais parecia uma bula,
senti que a letra ficou misturada e perdida nos labirintos da massa
cefálica do dito psicólogo, do meu, restando-me, então, retirar o real texto
poético que tinha jogado no cesto de lixo.
Diferente
de outras análises feitas por psicanalistas, mesmo sabendo de sua atenção para
comigo, não entendi o que ele prescreveu e ainda notei que não havia ninguém
ali ao meu lado, apenas o meu violão, a vastidão da natureza e o modo de como
eu enxergava o mundo que era diferente daquele descrito por psicanalistas. Por
outro lado nem existia divã ali na sacada, apenas um papel sobre uma mesinha, e
assim, agindo como uma pessoa normal e notando que nem existia o tal
psicanalista, me questionei: Será que eu estava psicótico, vivendo num mundo
onde a realidade é outra?
Felizmente
não era. Estava vivendo num mundo real, tanta realidade que ao olhar pra baixo
pude ver uma criança chorar e pedir comida à sua mãe que não tinha nada pra lhe
dar. Ela insistia, insistia, e faminta a criança dormiu à sombra de uma árvore
pra esquecer a fome. E foi ai que pensei: Quiçá um dia as crônicas e poemas que
escrevo servirão para algo, pelo menos alcançar o coração de alguém. Então,
voltei à mesinha e peguei o papelzinho que lá colocara, e não era a receita do psicólogo, mas sim, uma pequena parte do poema que escrevi para minha irmã:
“Irmã Rosa que viveu dias de outono que ora vêm vagos
e choram... Irmã Rosa que vê crisântemos roxos e estes se descoram, e dentre os
murmúrios dolentes de segredo, eu te abraço e te beijo”. Quando terminei de ler, simplesmente acordei! Tudo era apenas um sonho.
0 comentários:
Postar um comentário