Esta
história foi contada pelo amigo Duda Morais, poeta que morava no Morro do
Alemão. Dizia ele que certo dia quando subia lentamente a ladeira do morro,
avistou logo à direita um poeta que se encontrava debruçado sobre a janela. Deu
mais alguns passos e notou que do outro lado da rua, à esquerda, tinha outro
poeta. Continuou subindo e bem à frente numa pequena sacada, com o olhar
voltado para a imensidão do universo, viu mais um e mais além, numa mesa de bar
já perto do topo do Morro, mais outro. À medida que ia passando por eles Duda
observava que os mesmos estavam com semblantes preocupados e vozes emudecidas e
por razões óbvias, pois ouviam ecoar em todos os cantos da favela rajadas de
balas que riscavam a noite que mais parecia uma pirotecnia. Alguém estava com
um revólver na mão, mas Duda notou que não era o poeta que estava debruçado na
janela. A sua única arma era a caneta e na sua intimidade, usava apenas um
calção surrado e estava com o tronco nu exposto aos trópicos. Também não era o
poeta da direita, pois Duda mesmo com os olhos embaçados não o viu manejar arma
alguma. Observou também que estava desarmado o poeta que se postava na sacada,
assim como, o da mesa de bar. Na realidade eles tinham que ficar quietos para
não serem alvejados pelos traficantes ou policiais que adentravam na favela
atirando a esmo. Diante daquele calor agonizante ouvia outros zumbidos, mas os
de pessoas fazendo sexo, bebendo cervejas e dando risadinhas sarcásticas
escondidos com suas amadas nos becos escuros.
Duda dizia
que não enxergava tão bem mesmo tendo olhos perfeitamente sãos, mas usava
óculos de grau para enxergar à distância, todavia naquele entardecer ele tinha
esquecido sobre a escrivaninha. Se os olhos só veem aquilo que estão preparados
para ver, então os olhos do poeta estavam, pois a situação em tela, sob o olhar
dele, todo aquele aparato policial para enfrentar o tráfico era real, comum na
região, coisas que aconteciam cotidianamente, tão normais que mais pareciam
cenas de um filme reprisado. Sabia o amigo poeta que ao caminhar por aquelas
ruas estreitas começaria a viver um dilema conflituoso… Felizmente, seus
ouvidos eram aguçados e escutavam passos mesmo distantes. Dizia que tinha uma
boa audição. Mas seus olhos embaçados e na falta dos óculos não podiam ver com
nitidez o que os ouvidos ouviam… Escutar suas aflições, seus dilemas, escutar o
seu coração bater forte, e escutar o seu próprio caminhar era o que lhe
restava. Mas não podia ver nada daquilo, nem mesmo seus passos. O engraçado é que
não conseguia ver nem a si mesmo. Pensava: Será que eu estou invisível!
Era tanta
a sensibilidade que sentia as mãos do poeta da janela tocar em alguém; ouvia
estalos de beijos; sentia um gemido de mulher; ouvia o vento roçar seus
cabelos, mas se havia realmente uma mulher misteriosa ao lado daquele poeta
Duda até seria capaz de sentir, mas, infelizmente, não a viu, apenas escutava
murmúrios e estalos. Seus olhos de poeta estavam embaçados de tal forma que ele
não podia ver o mundo com sentimento de destruição. Contabilizou segundo e
chegou à conclusão de que tinha captado cinco sentidos: inexatos, confusos,
impróprios, relevantes, surpresos… que lhe levaram a sentir; sentir apenas o
que ele queria e podia sentir cujos sentimentos sabiam serem somente seus
porque era um ser humano, igual a todos nós.
O poeta
que debruçava na janela após beijar a donzela, puxou-a para dentro do barraco e
depois se despediu. Deu alguns passos, atravessou rapidamente a rua e subiu até
a sacada. Os dois poetas se cumprimentaram. O poeta que estava debruçado na
janela era esquelético, mas elegante, e o outro, mais troncudo. Um vestia
calção e camiseta surrada, o outro, calças jeans, mas com o tronco nu exposto
aos trópicos. De onde estava Duda quase não conseguia ver. Os outros poetas
ouvindo tiros subiram apressadamente a escadaria e juntaram-se aos dois que se
encontravam na sacada se ajeitando como podiam para fugirem das balas perdidas.
Houve confronto. Os traficantes ficaram frente a frente com policia que subia
com passos lentos e cadenciados, mas se esgueirando nas paredes das casas e
lojas comerciais. Mesmo com os olhos embaçados Duda via os poetas na sacada e
uma cumplicidade entre eles, como se fossem executivos se reunindo em torno de
uma mesa de negócios. A cada tiro, ao invés de retrucarem ou gritarem, os poetas
pegavam um caderno e escreviam poesias... E naquela noite foram muitas. Em
certo momento um deles parecia brincar com uma arma, fazendo girar no dedo como
naqueles filmes de caubói que Duda assistiu, eu assisti e sei que todos
assistiram nos tempos idos, mas não era arma, apenas uma caneta. Duda esfregava
seus olhos em círculos como faz o relojoeiro quando dá corda ao tempo. Rodava.
Parava. Rodava como nos filmes. E, de novo, um dos poetas, com a flanela nas
mãos, limpava uma coisa qualquer, como a um experiente zelador que lava e limpa
uma vidraça. Duda postou-se sobre o vão da janela de seu barraco que ficava
empilhado sobre outro, viu aqueles quatro vultos e á pouco metros deles um
pelotão de policiais. Com os ouvidos aguçados, deu um passo para trás e fechou
a janela. Lá de cima os poetas não podiam ver o que Duda de sua janela
repetidamente via. A rigor, nem olhavam ao redor da favela, e o que eles teriam
que enxergar, não enxergou e muito menos gritos carnavalescos que ecoavam pelas
ruas e avenidas.
Duda
enquanto estava postado na janela via outros personagens em cena. Uns subindo e
outros descendo vagarosamente pelas estreitas ruas. Ele viu um ou outro
favelado, alguns ainda usando fantasias carnavalescas. Um parava, mas olhava o
outro que estava armado, andando como se nada tivesse acontecendo. É coisa
comum na favela. Nada de espanto. Nada de constrangimento, dizia Duda. Mas ele
ouvia e via algo mais que eles. Via o vulto de uma criança voltando talvez
retornando de um arrastão. Sentia que ela estava sorridente mesmo com a
escuridão lhe cobrindo o rosto. Ouvia vozes e passos que subia calmamente os
degraus, e depois o vulto de uma pessoa parar diante de três homens de calção e
dorso nu. Um dizia qualquer coisa ao que brincava com uma arma como quem podia
a bênção ao pai ou saudava uma linda recepcionista. Olhava a arma como quem via
nela um fruto amadurecendo. Como quem olhava um instrumento de trabalho de
adulto. Com o mesmo pasmo do filho olhando os objetos usados pelo pai
marceneiro.
Olhando
todas aquelas cenas Duda compreendeu que todos somos prisioneiros de nós
mesmos. Na parte alta do morro ele contemplava de um ângulo homens seminus,
portando armas pesadas e de grosso calibre, e na sacada, num outro ângulo,
igualmente agudo, os seus amigos poetas, intranquilos, amedrontados. Duda e os
quatro poetas se sentiam prisioneiros, como se estivessem em cárceres privados,
imobilizados diante daquele visual antesocial, real, pervertido. A ansiedade
não se alojava apenas no ângulo de seus olhos embaçados, mas de meus amigos
também. Observava um rapaz de calção e sua arma, como quem via qualquer força
da natureza. Amanhã durante o dia ou à noite, ele sairá com mesma arma, como se
fosse uma coisa normal. Talvez encontre na rua ou numa travessia escura uma
pessoa incauta e lhe arrebente a cabeça com a bala de sua fúria. Ele não dará
tempo ao infeliz e atirará sem pestanejar ou apenas para ouvir o gemido do
desafeto. Se essa situação vir acontecer com comigo, com os poetas ou com
qualquer outra pessoa inocente, não estarão aqui para contar o acontecido,
todavia jamais terão um olhar indiferente dos poetas.
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