Tempos idos ouvi a música
“Grito de Amor”, cantada pela dupla sertaneja Felipe e Falcão. O som inebriante
de suas vozes e viola aguçava meus ouvidos e me fazia ir além de mais além. No
moirão da porteira olhava rumo ao horizonte em busca de lembranças, mas lembrar-me
de quê se eu era apenas um jovem sonhador. Mas como a uma canoa invisível que
desce rio abaixo, naquele dia me fiz invisível também e me acomodei sobre um tronco
de madeira para continuar ouvindo outras canções deles através de um CD, e
sempre fazia em todos os finais de tarde, depois de um dia exaustivo de
trabalho na fazenda Pomares. Como era bom escutar o ponteado da viola, cujo som
ao ser levado pelo vento parecia rasgar o céu que cobria aquele pedaço de chão.
Apaixonado pela música sertaneja restava-me ficar ali sentado naquele tronco de
madeira e apreciar cada nota musical. Era como se estivesse sonhando. Nunca em
preocupei em saber o nome verdadeiro de Falcão, o apelido já bastava para mim e
talvez, para as andorinhas, bem-te-vis e araras também, que enfileirados,
passava ao meu redor em voos rasantes, contentes,
como se aquela voz grave de Falcão confortasse a nossa alma. A cada canção perecia remar com a gente a favor da correnteza
da vida e nem sentíamos a existência de águas profundas, mas em certos momentos
sentíamos aperreados em face do acúmulo de tantas coisas, talvez mal resolvidas
deixadas prá trás, a maioria esquecidas, outras apagadas pela borracha do tempo.
Dia 18 de setembro de 2017 completará seis anos de sua
passagem por este mundo. Ao ouvir “Grito de Amor”, um dos maiores sucessos da
dupla, veio à minha mente lembranças do meu conterrâneo Falcão que amou e
sempre honrou a cidade de Morrinhos, então, procuro recebê-las igual a uma
cachoeira que cai mansa sobre um poço profundo, todavia, memórias não se
apagam, ficam gravadas em nosso subconsciente trazendo tudo de volta, sejam
boas ou más, e chegam, de uma vez só, restando-me arquivá-las da região
recôndita de meu cérebro como se fossem gotas de suor saídas da alma. Ah, que
dom e voz tinham Felipe e Falcão! As vozes e o som da viola ecoavam por aquele
rincão goiano e se misturava com o canto dos pássaros mexendo tanto com a gente
que nem tinha vergonha de ser chamado de caipira. Quem nasceu na roça entende o
que falo, então, quanta emoção, quanto sentimento se acoplava na minha retina,
que nada mais eram que coisas indeléveis de um homem sonhador. Quantos nós sentia
na minha garganta, que nem conseguia desatar, nem subir ou descer, numa mistura
de tristeza e alegria que só a saudade é capaz de criar. Dava até para sentir o
cheiro da terra, o tênue vento e o toque da textura do chão molhado sob meus
pés descalços.
Sabemos que viver como ele viveu nos palcos da vida
é somar mais vitórias que derrotas. É ficar inchado de coisas que nos deixam
pelo caminho. Raramente, os que morrem assim, são os preferidos de Deus. Morrer
assim é como a um ícone romântico que deixa hígida e festiva a imagem do morto,
de toda sua vida e do que poderiam ter ocorrido durante sua existência, assim
como, todos os sonhos e realizações dele. Na parede do casarão de puro adobe do
vovô Torquato um retrato emoldurado de Falcão, de perfil simples, que teve sua
vida voltada ao romantismo e era visível observar a mistura de um permanente
sorriso celebrando a vida, a juventude e a velhice. Era contagiante ver o seu
jeito alegre e a forma de como cantava e compunha suas músicas sertanejas, de
como enfrentava o dia a dia, de como encarava as tardes sem o pôr do sol, ou de
crepúsculos opacos, avermelhados ou cinzentos. Observei atentamente mais que
tudo nas antigas capas de CDs, as defecções, as rugas, mechas de cabelos
esbranquiçados, rosto imberbe e a crescente solidão de ver um vídeo noticiando
sua morte, um funeral cheio de pessoas que o admirava, cantando o “Hino do
Motociclista” de que tanto gostava. Dia 18 de setembro de 2009, depois de um
infarto, num leito de hospital em Goiânia, poucos ouviram o último suspiro,
calar uma voz, um som de viola e perdermos o último dos românticos da cidade de
Pomares.
O tempo passou e
parece ter sido tão veloz que me restou apenas imaginar se ainda existe aquele
tronco de madeira frente ao casarão de meu Avô Torquato e encostado à beira do
moirão da porteira. Voltei lá após seis anos e por incrível que pareça ele estava
lá intacto. De repente veio o vento e trouxe algumas ondas imaginárias sem me pedir
licença. Naquele recanto, imaginei pegar pétalas de rosas no quintal e ver se
elas ainda exalavam. Imaginei ver passar por aquele local as marés de
incertezas e não ter a mesma reação que tinha no passado. Imaginei encontrar
outras estradas e sonhar um sonho que sempre almejei sonhar, mas sabia que não
conseguiria sem aquelas canções inebriantes. Imaginei-me numa estrada deserta diante
de uma noite pesada demais mesmo sem ter pesadelos. Imaginei lembrar o passado
sem assombros. Imaginei, mas preocupei-me porque poderia encontrar essa estrada
cheia de escombros. Imaginei perder mais alguém nessa “estrada da vida”, onde
já perdi muitos. Imaginei Deus ressuscitando sonhos que perdi. Imaginei a não
existência de paraíso nem de inferno. Imaginei não existir pessoas que não
lutam por nada e se deixam levar pelo mundo profano. Imaginei alguém dizer: Eu
sou um sonhador, porque imaginei estar vivendo num mundo sem ganância, sem
fome, sem mortes, sem preconceitos, sem desamor. Imaginei vivendo em irmandade
fazendo o bem sem olhar a quem. Imaginei
poder compartilhar tudo o que penso, sem ofender ninguém. Imaginei encontrar
a felicidade e de ter localizado ao longo dessa “estrada” o amor e
realizar alguns sonhos, que às vezes, ressuscitados, vêm com pesados pedágios,
tributo que a vida nos impõe e que nos dificulta alcançar outros sonhos e
objetivos antes de chegar ao ponto final. Imaginei, ah, se imaginei!
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