Tem pessoas que quando acordam
para ir ao trabalho precisam de tempo para recuperar o prazer de se sentirem
vivas. Antes de levantar espreguiçam-se na cama estalando os ossos impregnados
na carne e em nervos adormecidos, deixando ao relógio a tarefa de eliminar os
resíduos de mau humor ocorridos no dia anterior. Todo o corpo está em
dissonância, até a respiração fica ofegante precisando resgatar mentalmente
alguma situação agradável para que o ato de levantar não se transforme numa
tortura. Algumas vezes sinto isso, principalmente quando me sinto massacrado
pela volúpia trazida pelo tempo quente e seco. Nestes dias de verão, ao abrir a
janela e olhar o céu azul, não consegui receber lufada de perfume antes trazido
pelo vento, e ao aspirá-lo senti foi o cheiro de fumaça oriunda dos veículos,
chaminés e de capim queimado vindo dos lotes baldios. Tudo isso dificulta
transformar o meu humor azedo num sorriso e ainda deixa-me em desconforto e sem
vontade de experimentar o gosto de mais um solstício de verão.
Certo dia,
nem sei o porquê lembrei-me quando era engraxate. Vi-me andando pelas ruas
poeirentas de Goiânia carregando um caixa de engraxar sapatos sobre os ombros,
sorrindo para o mundo, enquanto o vento acariciava meu rosto me deixando pra lá
de feliz. Lembranças que me trouxe disposição, motivos para acolher o melhor e
treinar meus olhos para as delicadezas que o mundo me oferecia. Olhei no
espelho e fiz um exame diário de meu semblante, na tentativa de encontrar
cicatrizes, pés de galinhas e olheiras que muitas vezes me impedia de ficar bem
com a vida. De um constante observar, este exercício facial resultava na
descoberta de falhas de comportamento, mas que podiam ser evitadas desde que
reagisse com lucidez. Essa reação diária de lucidez eu sei que é fruto das
meditações que faço para escrever minhas crônicas, assim como, de não reagir à
violência com violência, seja ela de ordem física ou psíquica. Sinto-me mal
toda vez que entro em conflito com alguém. Tenho horror a qualquer embate onde
a agressividade seja a nota que conduz a discussão.
Ninguém
está imune à inveja, mas não jogo cartas com ela. Não me interessa desafiá-la.
Apenas a encaro, como a um inimigo mais fraco do que eu. Já vi pessoas próximas
se sucumbirem, mesmo sendo ricas interiormente, porque acreditavam que outras
não mereciam o que tinham. Estas ficavam paralisadas diante de um falso fulgor
alheio e nem percebiam que estavam sentadas sobre uma mina de ouro. Invejar é
uma maneira de vestir a vaidade de modéstia. Por isso, acordar neste
verão e sentir o gosto das manhãs chuvosas sempre foi para mim salutar;
saborear o mamão, beber leite com café e mastigar um amanteigado pãozinho
francês com gergelim também faz parte do meu cardápio; saber olhar o mundo com
humildade e reverenciá-lo; entender que um dia a mais é um dia a menos na
contagem de tempo de nossa existência; entender que devemos aproveitar cada
minuto como uma criança que se delicia com uma balinha de hortelã em sua
boca sem se importar com o passar do tempo. Precisamos voltar a ser essa
criança, nascendo quantas vezes for preciso e espreguiçar entre os lençóis
embebidos por carinhos de nossa mãe.
Mas aquele
dia parecia que seria diferente. Quando sai do elevador e pus os pés sobre a
calçada senti um bafejo quente próprio de um planeta ameaçado. Nas calçadas
pessoas estranhas cheias de dogmas se cruzavam, outras, paralisadas, como se
fossem espectros humanos, com os olhos voltados rumo ao céu. Com o pensamento
alhures tinha que continuar, seguir o meu trajeto, com expectativas, é claro,
de encontrar um mundo melhor e mais humano ou, ser surpreendido por alguma
coisa real ou surreal, um fenômeno qualquer, talvez vindo de outra dimensão ou
do infinito universo de forma que pudesse servir de alerta aos seres humanos.
De
soslaio, já na calçada, em pleno meio dia, também olhei para o céu coberto de
nuvens enfumaçadas e foi difícil entender o segredo do universo. O sol,
importunado pela imensidão de nuvens em suspensão na atmosfera, formava ao seu
redor uma auréola multicolorida e parecia dizer: estou de olho nessa terra de
desmandos! Não sei se foi num momento de puro cansaço, parei e comecei ver a
vida passar, ou vidas passarem. Fiquei pasmo esperando o “acontecer
naturalmente”, mas como demorou, cansei. Esperei os minutos passarem e nem contabilizei
quantos, quem sabe se com eles não passariam também as dores, ansiedades,
tristezas e mágoas. Em um desses momentos que só acontece comigo, me senti
criança, pés descalços, andando pela calçada sem rumo e nada por acontecer,
talvez perdido, todavia, quis o destino que um garoto com semblante triste,
debruçado sobre sua caixa de engraxar e sem pedir licença, chamou-me à atenção
e com uma cutucada nos ombros perguntou: Vai graxa doutor? E não é que o danado
do engraxate me fez voltar à realidade!
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