Certo dia
eu fui conversar com o amigo Matusalém, fumante inveterado, que bebia em
demasia e conversava tanto que até espumava o canto da boca, esse fato nos
fazia lembrar de certo político goiano. Era uma pessoa boníssima, alegre,
cantava, tocava violão e era realmente bastante comunicativo, mas não posso
negar que tinha dificuldade de conversar com ele, pois além do cheiro do
cigarro, ele realmente falava demais. Eu o conhecia desde os tempos da jovem
guarda, então, o que eu podia fazer? Conselho já tinha dado tantos! O jeito era
continuar aguentando, a escutá-lo e nada mais. Podia-se dizer que ele era uma
pessoa que "falava por mim" ao invés de se envolver com o meu curto
palavreado.
Como não
sou de conversar muito, apenas o suficiente para o bom entendimento, esses
tipos de pessoas parecem ter uma capacidade
infalível para me encontrar, estando sozinho ou não. Posso estar relaxado num
canto qualquer, conversando tranquilamente com as pessoas, mas em segundos,
quando aparece esse tipo de gente mais pareço um animal assustado. É como
estivesse diante de faróis de um carro. Fico embaraçado e perplexo diante do
impecável monólogo dele ou deles, e preso, como se estivesse numa armadilha,
incapaz de escapar e buscar a minha liberdade perdida.
Difícil é
o tagarela entrar no ritmo meu, mas ocorre, visto que ele não se incomoda com
preliminares sociais e ainda exibe uma incrível habilidade de escutar, mas
quando volta a falar, o faz sem hesitação e até mesmo sem respirar. E isso às
vezes a gente suporta em razão de um vasto estoque de informações que carrega e
que contém muitas vezes temas favoritos nossos, principalmente, literatura,
artes e até futebol. Interrompe-los ou conseguir um aparte jamais nós devemos
fazer isso, pois eles têm suas estratégias. Não resistem momentaneamente, olham
pra gente sorrateiramente enquanto murmuramos nossas tolices, e no momento em
que vacilamos, eles continuam de onde pararam - como se a gente não tivesse
falado nada. E o pior é que não falamos mesmo! O tagarela incessante não se
distrai com tais irrelevâncias. Tudo que importa é transmitir o que está em sua
mente.
Quando
estou diante desses indivíduos gosto de observar com atenção a sua fala no afã
de descobrir não apenas o que eles pensam e fazem, mas porque pensam e fazem.
Para o tagarela uma coisa é certa, ele não é motivado pelo incentivo. Longe de
incentivá-lo, eu e os meus leitores/vítimas tentamos é evitá-lo.
Alguns
indivíduos estão envolvidos em seu próprio mundo - egocêntricos, simplesmente
não estão interessados em nós ou em nossos sentimentos. Eles nunca aprenderam
que o diálogo sadio e comunicação entre pessoas é uma troca de ideias,
sentimentos e informações mútuas, todavia, durante minha observação descobri
que essas pessoas são tímidas e até certo ponto nervosas e que suas conversas
também bloqueiam o seu próprio diálogo, trazendo o medo da interação e a sua
forma de tagarelice, nada mais é do que manter-nos à distância. Eles acham que
são interessantes e que os outros gostam de ouvi-los. Eles acreditam que
comunicação é entreter pessoas ou de lhes fornecer informações, nos deixam
hipnotizados, sobrecarregando a nossa mente, inibindo o nosso pensamento,
confundindo-nos com suas falas monotonamente compassadas.
Mas
voltemos ao meu amigo Matusalém. Naquele dia observei que se encontrava
bastante calado, para mim, anormal. Eu puxava conversa e nada. Notei que alguma
coisa tinha acontecido. O seu semblante estava triste e os olhos avermelhados.
Cabisbaixo, soltou um sorriso pálido, deixando de lado suas habilidades
tradicionais de um grande comunicador, esvaiu-se a sua simpatia e como bom
ator, escondia o que se passava com ele. Procurei fazer umas graças, contei
piadinhas, mesmo sem graça, mas contei. Tentei ser tagarela igual a ele, mas
nada funcionou. Pensava comigo mesmo: Será que naquele dia queria em que fui
visitá-lo queria jogar um jogo diferente ou queria que eu o notasse de verdade.
Percebi sim, mas apenas diferenças no seu modo olhar, de como se cuidava ou
como fazia para escapar, de como passar-se por ofendido, magoar-se ou até, em
certos momentos, recusar-se a perder o seu tempo com a gente. Mas a minha
obrigação de amigo era lembrar-lhe de nossa amizade e que podia confiar,
todavia, qual foi minha surpresa quando ao ler um diagnóstico jogado sobre uma
mesa, simplesmente constatei que às vezes pertencemos a um bando de calados,
que às vezes fingimos de cegos ou de surdos diante de certas situações. Então,
sem ele perceber, eu peguei a pequena anotação médica e comecei a ler: “O
câncer da língua, garganta e pulmão não são o mais frequente de todos, no
entanto costuma manifestar-se em fumadores ativos e em pessoas que bebem
bastante, e que com o passar dos anos, a sua presença dentro das estatísticas
vão aumentando. É mais comum nos homens do que em mulheres, esta doença conta
com um bom prognóstico de recuperação se for detectada a tempo, por isso
torna-se importante saber quais são os primeiros sintomas de câncer da língua, especialmente se encontrar no grupo de
risco.” Fiquei perplexo!
Sabemos
que viver muito é somar perdas, é ficar inchado de coisas que nos vão deixando
pelo caminho. Raramente, os que morrem assim, são os preferidos de Deus. Morrer assim é
como um ícone romântico que deixa hígida, festiva a imagem do morto, de toda
sua vida e do que poderia ter ocorrido durante sua existência. Todos os sonhos
e realizações. No álbum de fotos do amigo era fácil observar o permanente
sorriso celebrando a vida e a juventude. Era fácil ver no seu jeito alegre e a
forma de como enfrentava o dia a dia, de como enfrentava tardes sem pôr do sol,
ou de crepúsculos opacos, avermelhados ou cinzentos. Mas naquele instante além
do seu álbum, observava mais que tudo, as defecções, as fugas e a crescente
solidão de ver grupos de pessoas amigas nos deixando, assim como ele, indo para
outra dimensão, enquanto outros, aqui na terra, se encolhendo a cada dia, como
aconteceu com Matusalém, dias depois, num leito de hospital, onde ficamos
sabendo de sua grave doença. Atônitos, ouvimos ali o último suspiro, calar-se
uma voz e vimos o grande amigo tagarela deixar este mundo para sempre.
O mundo ficou mais silencioso, naturalmente. O silêncio pode ser de ouro, mas às vezes é um campo fértil para o isolamento e a solidão. Matusalém se conectava falando, pelo visto. É um forma de comunhão….
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