Hoje, faz meses que ela o abandonou. Tempos idos quando caminhava juntos ele sentia uma vontade danada de conversar com pessoas que passavam pelas calçadas e ruas da cidade. E a sua sombra era alegre, assim como ele, que se encontrava de bem com a vida. Era filho de gente abastada e fazia da sombra o que bem queria. Brincava com ela usando as mãos, sinalizando gestos grotescos diante de lâmpadas que se refletiam no branco muro da mansão. Aos transeuntes, ele sem ao menos fazer autocrítica, perguntava se estavam entusiasmadas com a vida, às outras, menos afortunadas, indagava se estavam felizes com seu emprego, se viviam bem com a família, com os filhos e se invejavam dos sucessos dos amigos. Mas, brincadeiras à parte, certo dia alguém que se dizia amigo lhe enveredou pelo mundo das drogas e por mera brincadeira, cheirou o maldito pó. Uma brincadeira que lhe custou caro e o tornou viciado, perdeu tudo que tinha, até sua própria sombra. Meses se passaram e não conseguia se livrar da droga indo parar na sarjeta; começou a perambular pelas ruas sem rumo, sem destino certo. Sua mente embaralhava, a cada baforada aumentava as alucinações, enxergava coisas estranhas que jamais imaginara ver. De tanto matutar cansou e sem a sombra, sua única companheira, sentiu-se desnorteado, perdido no mundo do seu próprio ser. Ela que o acompanhou, lhe ajudou a minimizar as alegrias e tristezas e repetia prazerosamente nas suas andanças gestos precisos e imprecisos, agora jaz na escuridão. Ela sabia tudo sobre ele, e em certos momentos, parecia querer lhe alertar sobre o seu modo de vida e o fio de esperança que ainda lhe restava: Deus. E foi nesse fio, mesmo dominado pela droga, que tentou se agarrar para viver seus últimos dias, mas, incrédulo, não conseguiu conversar com ELE. Achava que era tarde demais! Lembrou-se dos tempos idos, do amor de sua mãe, do saudoso pai que lhe deixou como herança o tino para o trabalho; lembrou-se da prosperidade, onde acreditava na sua capacidade de trabalho, de vencer o invencível, de construir o sucesso, de transformar a realidade e viver a bonança. Tempo em que conseguia deixar de lado todo o negativismo, o ceticismo, abandonar a descrença e entusiasmar com tudo que acontecia, mesmo quando não havia luz para refletir a sua rica sombra, e principalmente, entusiasmar com alguém importante que hoje passa pela calçada e vê que não é sombra, é real, mas, certo de que uma o acompanha e se refletirá diante de quaisquer luminosidades, ou em dias de sol ou em noites enluaradas. Mas, para ele era realmente tarde demais. Não tinha religiosidade, não conseguia libertar-se das drogas e os prostíbulos era seu ninho, e aí, começou a viver no mundo profano e se arrastar pelas calçadas como a um lixo humano.
Nos últimos dias, ora sob o sol causticante, ora sob chuva torrencial, algumas pessoas passavam, desdenhavam dele, desviavam o olhar, lhe ignoravam, e outras, nem o viam ou se faziam de cegos; as mais imbecis diziam: "não cheguem perto, pois este homem é usuário de droga e parece que nem sombra tem”. Diante daquelas palavras, olhou para a calçada e confirmou que ela não estava lá. Talvez se envergonhasse dele, pois era uma sombra que acostumara com sua elegância nos tempos de prosperidade. Era imponente e os seus gestos logicamente refletiam a sua soberba, a sua presunção, a sua arrogância e o seu modo metido de ser.
Deitado debaixo da marquise, quase inconsciente, alguma força estranha ainda o fez arregalar os olhos. A doçura de uma voz de mulher, vestida de avental branco. Começou a tocar-lhe e disse: "Senhor, coma este alimento, você está tão frágil”. “É bom alimentar, pelos menos te ajudará a minimizar as dores”. Nem soube como, mas lágrimas saíram rolando pelo seu rosto, e mesmo quase desfalecido, concordou. Tomou aquela sopa e dada a sua fraqueza, engoliu vagarosamente e nem sentiu a picada da injeção que ela lhe aplicara. Ainda lúcido, foi levado a um albergue e, colocado sobre a cama, ele nem mais se importava se havia sol ou lua para trazer sua sombra de volta e nem pensava em saber o porquê teve que nascer se o mundo não lhe queria... Sabia que não mais veria a sua sombra e que naquele dia fatídico ou no dia seguinte poderia ser o seu fim... (Átila, dois dias depois, deixou este mundo por uso excessivo de cocaína e crack). Com a própria saúde na UTI, urge à família, à sociedade organizada e ao Poder Público implantar uma política eficaz de atendimento ao dependente químico e apoio aos seus familiares, assim como o combate ao tráfico de drogas e a prevenção ao uso dessas substâncias.
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