Amigo leitor (a)

Amigo leitor (a). Quando lemos um livro, ou qualquer texto, publicados ou não, que são sinônimos do prazer, por mais simples que forem, sejam reais ou surreais, nos permite exercitar a nossa memória, ampliar nossos conhecimentos e nos faz sentir as mais diversas emoções, por isso, sensibilizado, agradeço a sua visita ao meu Blog, na esperança de que tenha gostado pelos menos de um ou que alguns tenha tocado o seu coração. Noutros, espero que tenha sido um personagem principal e encontrado alguma história que se identificasse com a sua. PARA ABRIR QUALQUER CRÔNICA OU ARTIGO ABAIXO É SÓ CLICAR SOBRE O TÍTULO OU NA PALAVRA "MAIS INFORMAÇÕES. Abraço,Vanderlan

E o mundo não acabou...

domingo, 30 de dezembro de 2012


Muitos estavam esperando pelo fim do mundo que teoricamente, poderia ter acontecido no dia 21 de dezembro de 2012. Até eu que me encontrava de férias e teria que voltar no dia 21, me deixou confuso e aí perguntei a mim mesmo: será que terei que trabalhar somente até às 11 horas? E como vou receber meu salário se o mundo acabar? E minha conta bancária? O mundo da economia girou em minha mente e enxerguei muitas perdas. Lembrei-me do meu amigo que comprou um carro a prazo. Será que vai ficar livre das prestações? E uma amiga que marcou a data do casamento para o dia 22, será que terá que comemorar sua lua de mel antes do dia 21. E o Papai Noel receberá seu salário no dia 25? E a nossa “semaninha” como ficará? E a chefa, será que vai tirar suas férias em janeiro? E o Breno não vai precisar distribuir processos para a alegria dos Doutores Jorge, Antônio, Joaquim e Isa? É complicado lembrar-se de fim do mundo. Mas está escrito no calendário Maia. Ah, então, quão felizes deveriam estar os presos que iam receber o indulto de Natal e saber que não mais voltariam às celas. Ah, quão felizes deveriam estar os condenados pelo STF que ficariam livres das penas impostas, pois não as cumpririam se o mundo acabasse. Ah, quantas pessoas que ficariam livres das dívidas e hoje choram pela farsa do fim do mundo. Ah, quantas outras situações pessoais, espirituais, amorosas, hipocrisias, seriam resolvidas com o fim do mundo. Felizmente, para essas pessoas, existe uma série de fatores que passaram despercebidos até mesmo pelos olhos mais críticos e céticos do planeta. Uma imagem começou a circular por blogs e redes sociais, mostrando que, se fôssemos levar em consideração o calendário maia, o mundo já teria acabado. Parece que ocorreu um erro de cálculo, não acrescentaram os anos bissextos. Não obstante isso, se você achava que o mundo ia acabar,  bom, provavelmente poderia estar certo.  Afinal, um dia, tudo acaba. E, se não cuidarmos da natureza, se nenhum grande asteroide gigantesco atingir a terra antes, como mostram os filmes, ou se não acabarmos nós mesmos com o planeta em guerras nucleares, ou em alguns milhões de anos o Sol se distanciar da Terra e esfriar, é claro que todos os seres vivos morrerão e não mais existirá vida na Terra. Com ela ficará depois de tudo isso, só Deus sabe.

De acordo com o discutido calendário Maia, o dia 21 de dezembro de 2012 marca o fim de um ciclo de 5.125 anos e está ligado a desastres naturais. Alguns estudiosos afirmam que o encerramento do período pode significar o fim do mundo, com terremotos, tsunamis e enchentes em diversos locais da Terra, mas isto já vem acontecendo há milhares de anos. Em face do tão propalado fim do mundo em 2012, a questão que se colocava é se teria algum fundamento ou não as afirmações de alguns que anunciavam através da mídia, “o juízo final”, o “Apocalipse”, o “Armagedom”, o fim de um ciclo ou o fim de uma era, como quiser chamar. Até eu, preocupado com a devastação e poluição atmosférica, escrevi dois artigos intitulados de “Começo do Apocalipse I e II”, todavia, me baseava nos desastres naturais que a terra vinha e vem sofrendo. Mas falava em começo e não fim. Entendia que, embora alguns não conseguirem voltar atrás nas suas decisões prejudiciais a natureza, o importante é saber que eles ainda têm tempo para consertar o estrago, de tentar um novo começo e delinear um novo fim. Não o fim do mundo anunciado para o dia 21 que levou em conta as crenças de diversas civilizações como os Maias, os Celtas, os Egípcios e profetas como Nostradamus que fizeram alguns chegarem à conclusão de que o fim estava próximo, ou pelo menos o mundo da forma como o conhecemos. 

É certo que já por várias vezes se apontou esta ou aquela data como a do Juízo final. Lembro, por exemplo, da crença quase generalizada de que o mundo iria ou acabar ou sofrer uma enorme transformação quando da entrada em 2000. Ia dar uma pane geral. Pois bem, nada aconteceram, a não ser o aumento da criminalidade aqui e ali, a perda de valores humanos crescentes e os atentados terroristas de 11 de Setembro e de 11 de Março, assim como a da forma desumana e aviltante com que alguns terroristas ceifaram centenas de vidas, denominados de “homens bomba” que nos fazem pensar no quão perigoso é o extremismo religioso e esse ódio exagerado principalmente entre Estados Unidos e o Islamismo. E a criminalidade no Brasil que é estarrecedora?

Voltemos ao assunto em pauta. Afinal o que aconteceu no dia 21 de dezembro de 2012?  Nada. Não é curioso que civilizações tão distintas, separadas cultural e geograficamente, apontem no mesmo sentido?  Sabemos, e isso é certo, que nunca vivemos tão graves crises como vivemos agora quer políticas, quer econômicas, naturais ou ambientais. Se pararmos para pensar facilmente dará conta que estamos perto da insustentabilidade. Dia após dia os recursos naturais se esgotam. Realmente, nada aconteceu nada no dia 21, tampouco sei que não acontecerá de fato alguma coisa, mas sei que é urgente uma transformação da mentalidade humana. Talvez o mundo que achavam que ia acabar se torne um exemplo de superação de ânimo e seja injetada no mundo uma nova tomada de consciência.

...eram apenas gestos refletidos na parede.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012


Preguiçosamente apertei a frouxa lâmpada do abajur que perscrutava as sombras dos gestos refletidos nas paredes, mais parecendo seres vivos extraídos de um filme de animação, mais vivos do que jamais refletira. O velho abajur geralmente iluminava debilmente o quarto fazendo a luz branda tornar todos os meus gestos romanticamente surreais. Todavia, de repente, a luz que a muito não acendia tão intensamente, surpreendeu-me com seu poder de claridade. Alguém deve ter substituído à lâmpada de 30 wolts. Os movimentos sombreados na parede começaram a acontecer como a um desenho animado filmado em câmera lenta e em formato de preto e branco. A ação refletida na parede era febril e frenética, mas também estática, bastava ficar quieto. Os gestos de minhas idas e vindas retesavam-se na branca parede do quarto e lutavam para se libertar de um corpo estranho que se movia de um lado para outro e insistia em não liberar meus gestos embutidos naquela cena surreal, mas, fortificados com a presença da luz escaparam do peso daquelas sombras e rejuvenesceu o meu coração que de tanto lutar já gesticulava incólume.

A luz brilhou mais forte e pensei que nunca acabaria. Olhei para um canto vi a cama e berço vazios e sobre a cama e abraçada a um travesseiro, faltava alguém. Com os olhos ainda travados pelo sono, cabelos desalinhados, mãos calejadas de lida rotineira fiquei pasmo e uma saudade abateu-me sobre o peito. Faltava realmente alguém naquele espaço, alguém que ajudou a curar as minhas dores e feridas. Alguém que não reclamava de nada, nem das dores desconfortantes dos seus pés ou dos joelhos, pernas e braços esfoladas de quedas e estripulias que a própria vida gerou Alguém que naquela noite inusitada não pode ver seu rosto ser iluminado pela nova e potente lâmpada do abajur. Esse alguém que se estivesse ali tenho certeza de que a luz mostraria na sua face o dom de me devolver à calma que a vida tantas vezes insistiu em me roubar. Cenas surreais de gestos realmente inusitados refletidos na parede que somente eu tive o privilégio de assistir: um corpo de mulher em movimento coberto por um lençol cheio de contrastes e cores, amparado por um travesseiro de espumas macias que protegia a imagem de uma guerreira. Só podia ser surreal, pois há dias não acendia aquele velho abajur e jamais pensava assistir cenas tão preciosas que minha mente não esquecera e jamais esquecerá. Mas, a saudade é difícil de imaginar mesmo quando se vê apenas gestos. É uma coisa estranha que toma conta da gente, chega sem pedir licença e acontece quando menos imaginamos: saudade do seu cheiro, de uma melodia que curtimos, que nos trás boas recordações, saudade de uma simples palavra, de uma manifestação de amor; saudade daquelas imagens que foram acopladas cotidianamente na região recôndita de meu cérebro, mas, eis que a máquina do tempo surgiu me envolveu e convidou-me a voltar a ser criança. A mulher que se gesticulava nas sombras refletidas na parede soube costurar a vida usando a linha da verdade para que os filhos pudessem construir suas vidas com sobriedade. Alguém que deixou a saudade invadir o meu peito e se transformou numa ponte de concreto e me fez retornar a mim mesmo; uma travessia moldurada de sabedoria, sem empecilhos, onde se vê bordada uma identidade muitas vezes esquecida, perdida na pressa que me levou ou me que deixa levar. Ao olhar para os gestos e falar em saudade dela é dizer o óbvio, é devolução, é ato que restitui o que se parte; é luz que sinaliza o local de nosso porto seguro, é voz mansa no ouvido que nos acalma nas madrugadas de desespero e solidão.  Mas, naquela noite, ao acender a lâmpada do abajur e ver aquelas cenas refletidas na parede não me restou alternativa senão em finalizar este artigo em uma única frase: O poeta tem diante de si vários sentimentos: o real, o palpável, o prático, o surreal, o imaginário, visões fantasiosas, e quando escreve, muitas vezes objetiva levar ao leitor uma mensagem de amor, esperança, fé, e intencionalmente, deixa de dedilhar o teclado do computador e o substitui pela caneta-tinteiro injetando nela a ruborizada tinta de um coração ferido pelo tempo no afã de aferir a sensibilidade de cada um, mormente quando virem perscrutadas as sombras de sua amada e suas refletidas na parede.

Feliz Natal e Próspero Ano Novo.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012


São os votos de Vanderlan Domingos e Família.




O Carapina e o Pica-Pau

terça-feira, 11 de dezembro de 2012


Torquato era uma pessoa afável, inquieto, criativo, e extremamente curioso. Não tinha dificuldades para se concentrar. Gostava de compartilhar tudo com os outros e não conseguia guardar suas ideias só para si. Começava a tagarelar e nem se importava quem era o ouvinte. De bom astral, parecia querer competir com um inquieto e barulhento pica-pau que vivia circundando a sua carpintaria, o qual, de vez em quando, tentava com seu bico afiado furar as madeiras que ficavam amontoadas no canto do galpão. Torquato era tão tagarelo que exagerava. Tentava colocar sua vida numa realidade que não existia. As palavras que saíam de sua boca eram levadas pelo vento, sem nenhum sentido. Dizia o indizível e não conseguia controlá-las. Falava tanto que até escumava o canto da boca. 

Com exceção a de ser tagarelo, na sua vida não havia excesso e consagrava-a a Deus. Durante muitos anos trabalhou com afinco na sua carpintaria; beneficiava a madeira com paciência, cortava-a e lavrava em peças com esmero, e a maioria era utilizada nas coberturas, soalhos e forros. Era costume, antes de manusear a madeira, ler a Bíblia e louvar ao Senhor. Fazia orações todos os dias, mas apesar de toda essa dedicação nada parecia dar certo em sua vida e a situação financeira aumentava a cada dia. Mas, numa bela tarde, o pica-pau sobrevoou o galpão, desta vez assentou-se comportadamente sobre um pedaço de madeira e com os olhos lânguidos, parecia se compadecer da situação difícil daquele carapina. Torquato ficou observando o bichinho imponente de topete vermelho e achou estranha a quietude daquele pássaro, justamente depois de uma estilingada que lhe dera ao amanhecer para se livrar do barulho que fazia no quintal. Como resolvera se tornar um homem temente a Deus não o molestou, mas, continuou observando.  Aquela pequena ave parecia admirá-lo, queria ajudá-lo e fortalecer sua fé, mas apesar de ser um bom profissional e crer no mundo espiritual até aquele dia não sentira uma melhora financeira, vivia de minguados serviços.

Torquato ficou observando atentamente e a ave permanecia quieta. De repente levantou outro voo e acomodou-se sobre uma linda cruz de madeira. Queria lhe chamar a atenção, dar-lhe um sinal que estranhamente parecia moldar-se sobre a cruz. Procurando entender o que estava acontecendo abriu novamente a Bíblia que estava sobre uma mesinha e leu o primeiro texto que apareceu diante de seus olhos. Compassadamente foi absorvendo cada palavra e aí começou a compreender que Deus tem propósitos para tudo e que todas as coisas concorrem para o bem daqueles que o ama. E Torquato desconfiou que aquela ave estivesse sendo usada para lhe trazer uma mensagem e passou a olhá-la com admiração, não a molestou e assim ela permanecia firme. Então, vendo a oportunidade começou a conversar com o pica-pau: “Amigo você deve ter vindo de um reino encantado e sempre o recebi nesta oficina com muita raiva, talvez pelo barulho que você faz, mas hoje, dou a mão à palmatória e até entendo que queiras me imitar, pois de certo modo, trabalhamos com madeira. Perdoa-me, haja vista que, sem piedade, lhe atirava pedras com aquele estilingue, talvez até não desejando, ato que me doía o coração. Hoje passei a entender que a oficina inteira era só barulho e comparativamente ao seu, é insignificante. Mas, hoje quero mudar meu comportamento, fechar a boca e construir uma nova vida, pois você me fez ver isso e para mim já é suficiente.”.

Torquato, pela primeira vez deu uma pausa, pensou e concluiu: “Sei que Deus está me colocando no fogo das aflições. Então, vou procurar aceitar as “bicadas” que a vida me dá. Às vezes sinto-me tão frio e insensível como o pó ou a lasca que sai da madeira. Não é fácil, mas a única coisa que peço a Deus é que não desista até que eu seja o que Ele espera de mim. Que leve o tempo que precisar, mas jamais quero ser um lixo como aquela serragem, ou as migalhas de ferros retorcidos e restos de madeira que só servirão para ser derretidos em fornos ou queimadas num fogão de lenha”.

Cabisbaixo, abriu novamente a Bíblica e leu em voz alta para que a pequena ave ouvisse e até servisse como um pedido de perdão: “Minha graça é suficiente para você, pois o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza. Portanto, eu me gloriarei ainda mais alegremente em minhas fraquezas, para que o poder de Cristo repouse em mim. Por isso, por amor de Cristo, regozijo-me nas fraquezas, nos insultos, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias. Pois, quando sou fraco é que sou forte.” (Coríntios 12.9:10). Nem bem terminou de fazer a leitura uma antiga cliente adentrou ao galpão, encomendando-lhe muitos móveis rústicos e peças ornamentais dizendo que sempre elogiou seu belo trabalho de carapina aos amigos. O pica-pau ao ouvir ficou em júbilo, bicou suavemente a cruz três vezes e levantou um voo rasante atravessando o quadriculado da janela. Em poucos segundos desapareceu no horizonte e a partir daquele dia a clientela de Torquato se multiplicou.

Elesbão, o jardineiro de Deus.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012


Elesbão sempre teve uma vontade danada de ser jardineiro. Desde pequeno gostava de trabalhar com a terra. Era um exímio oleiro e construtor. Fazia tijolinhos usando o quadriculado das caixinhas de fósforos, construía pequenos castelos com jardins floridos; afundava as mãos no barro, nem sentia a meleca que vinha da terra e nem o calor causticante do sol que lhe queimava as costas franzinas. Quando o tempo era frio, sentia os dedos adormecerem, mas, mesmo assim, se inebriava com os cheiros vindos dos quintais e contemplava cada estação do ano como se fossem uma só, e o mesmo fazia em relação ao sol e a chuva, enquanto o pai lançava sementes no jardim. Regava-as nas horas apropriadas. Ele conversava com as plantas, suas mãos eram pura magia e bastava encostar os dedos para elas nascerem vistosas. E pacientemente esperava a lenta maturação da vida... E cultivar flores era seu sonho. E Elesbão, com os olhos vidrados no trabalho, com os dedos em riste apontava para o seu pai e dizia: Um dia serei jardineiro como o senhor e para o Senhor!

Sem dúvida que ele seria um bom jardineiro, nascera e crescera ajudando a manusear aquele imenso jardim. Suas mãos sabiam massagear o barro e separar a terra preta, boa para o plantio. Sabia admirar as plantas que se erguiam do solo e produziam botões que se abriam em pétalas de diferentes cores e tonalidades, mas, também, entendia que se não fossem regadas diariamente, murchariam, secariam e os caules dobrariam sobre a grama inerte. Como bom observador sentia a voluptuosidade com que elas buscavam o céu azul, a luz solar e o ar livre, e depois, se não regadas, curvariam encarquilhadas sobre o chão, morreriam e cairiam no esquecimento. Mas, mesmo assim, deixariam sobre a terra as sementes, que cedo ou tarde, haveriam de romper a superfície e se reerguerem para a vida.

Mas, o pai de Elesbão, o cultivador de flores, lhe transmitia outros segredos. Sabia que cada uma delas era única, incomparável e insubstituível. Inútil perguntar a ele qual a mais bonita, a mais sedutora, a mais cheirosa. Todas o são, embora distintas. Ou melhor, todas são belas justamente porque distintas! É a diversidade de formas e aromas, cores e tons que torna encantado o jardim e o senhor do jardim sabe, ainda, que cultivar flores não é tomar posse delas. Aprende-se que somente há de colher as flores que cultiva com o toque mágico de suas mãos, rudes e ternas a um só tempo. O bom jardineiro rega com as lágrimas, colhe com o olhar, acalenta-as com a voz, com o deslumbramento da alma, pois, prendê-las, simplesmente seria uma forma de condená-las à morte.

Unidas ao sorriso de Elesbão diante de seu pequeno castelo, ao monte de terra boa, fertilizada, ao murmúrio ou ao rugido da água, à luz longínqua das estrelas, ao sol e a lua que chegam ou que partem ao olhar de quem ama ou à lágrima de quem ainda é capaz de chorar, aos corações sedentos de justiça ou às mãos que combatem pelos direitos humanos - as flores integram a grande orquestra da criação. Instrumentos distintos, que tocam notas diferentes, mas exprimem a beleza de uma sinfonia comum.

Elesbão realmente cresceu junto a aquele jardim. Ajudou a plantar, zelou e viu flores crescerem, murcharem, secarem-se. Mas, certo dia ao enfiar as mãos debaixo de um feixe de galhos podados já ressequidos de um roseiral foi picado por uma cascavel. Estava só naquele instante, não foi socorrido e nem houve tempo de lhe aplicar o antídoto. Quedou-se diante do mundo colorido em que vivia, morrendo no limiar daquele dia. De repente, como por encanto, sentiu seu corpo subir ao céu e diminutamente via as flores desaparecendo diante dos seus olhos e nem compreendia o que estava acontecendo. Montou num cavalo alado e este começou a galopar sobre as nuvens brancas e uma paz incomum abateu-lhe sobre o peito, enquanto o céu escurecia e milhares de meteoritos passavam como que querendo saudá-lo naquele espaço sem fim. Um túnel iluminado em forma de cone se abriu e logo desceu sobre um imenso jardim cheio de flores variadas. Ao tocá-las com as mãos sentia que elas nem precisavam de jardineiro e um sorriso alargou em seu rosto e o seu coração ficou em júbilo. Ainda atônito, percebeu alguma coisa à sua frente, alguém sentado numa pequena nuvem branca, cercado de uma luminosidade que lhe ofuscava olhos. Era a oportunidade de perguntar e saber quem era o dono daquele lugar aprazível, encantador. Nem foi preciso. Uma voz branda, que lhe causou arrepios, disse-lhe: Elesbão meu filho, a partir de hoje você cuidarás do paraíso! A única palavra que saiu de sua boca foi: Sim Senhor! E logo apareceu do lado direito um imenso castelo, o mesmo que construíra usando pequenos tijolinhos feitos de caixinhas de fósforos. 

Na sua simplicidade, nem poderia entender que a sua frente estava à imagem de Deus. O trono de nuvens era apenas o retrato humanizado do pensamento de uma época que Elesbão sequer chegou a conhecer, pois sempre vivera tomando conta de um jardim, fato que faço questão de citar neste artigo para que cada um leve em conta e faça uma reflexão mais profunda sobre o nosso Pai celestial. Ele é o amor infinito, a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas, é aquele que não tem começo nem fim, e não pode ser conhecido através dos esforços intelectuais de uma mente humana que, por mais avançada ou capaz que for, está sujeita a limitações. Deus, portanto, é uma força que não pode ser analisada ou mensurada, só podendo ser sentida e contemplada através daqueles que têm coração puro. 

Como parte final, quero sublinhar, talvez em forma de parábolas, a lição deixada por Elesbão: plante, regue e cuide de sua da flor, porque é bela, fugaz e frágil, porque ela é como a luz que brilha e se apaga, porque ela é como a noite ou o dia, que se revela e se esconde, porque ela é como as estrelas que aparecem e desaparecem com o nascer e o pôr do sol, porque elas à noite se acendem para tirar o medo que ela tem da escuridão, ou ela é como você que se oculta para estimular a busca e nutrir um amor fiel e persistente como o deixado por Elesbão, o jardineiro de Deus.

Voando sem asas.

terça-feira, 27 de novembro de 2012


Sentado no moirão da porteira agucei meus olhos rumo ao horizonte no afã de enxergar o imprevisível. Aos poucos o brilho do sol foi desaparecendo e o céu não querendo estragar aqueles momentos de prazer ofereceu-me a lua, que soberba, nascia detrás dos montes. Abri a janela de minha alma e rocei com meus pensamentos as relvas úmidas da vida sem precisar me privar de admirar os últimos resquícios do pôr sol. A beleza da natureza era um bálsamo para o meu espírito inquieto, mas transparente como a uma bolha de sabão, que muitas vezes levou meus sonhos certos e incertos, imagináveis e inimagináveis, como se fosse uma nave espacial desgovernada e sem plano de voo.

Quantas lembranças vieram à minha mente. Naquele mesmo moirão, ainda menino, aprendi vislumbrar o bonito que céu oferecia. À noite que tinha medo da escuridão enchia-se de estrelas reluzentes; o dia renascia carregado de nuvens brancas feitas flocos de lã, parecendo carneirinhos, e quando se tornavam escuras prestes a desabarem em temporais, nem me importava, pois tudo me ensinou que beleza existe em qualquer desses céus.  Muitas vezes o tempo passa veloz sem a gente perceber, mas, Deus percebe e está presente em todos os nossos momentos de dificuldades, fraquezas, sucesso e insucesso. É Ele que faz o sol brilhar, que faz a noite cobrir de estrelas o céu que hoje volto a admirar com meus olhos no mesmo lugar. É Ele quem dá o frio do inverno, as chuvas e o calor estressante do verão; faz as folhas secas de outono cair, e a fascinante primavera encher-se de flores e despedirem-se deixando saudades nos primeiros solstícios de verão.

Então, hoje, pare, pense, reflita sobre si mesmo. Tem um poeta dentro de você basta querer. Os poetas têm alguma coisa em comum: têm os pés na terra, mas seu olhar, seu coração, seu pensamento estão cravados no céu, e assim, não pense duas vezes, crave o seu e mire o azul do céu, ouça os cânticos dos pássaros, aprecie a lua e todo o seu esplendor e aí escreva o que sentiu. Escreva o que fluiu de seu pensamento e terás a certeza de que sua alma renascerá e começará a viver o bonito, o prazer que vem das palavras e todos te entenderão. Não tenha preguiça física ou mental. Fale coisas que possamos entender, sejam reais ou imaginárias. Quando ler meus escritos, mesmo sendo de tempos idos, com as páginas amareladas pelo tempo, podem até parecer que foram escritos dias atrás, mas não foram, porque aquilo que imaginamos será atualizado pelo próprio tempo e os manterão vivos e reais.

Se sempre ler e escrever suas fontes de inspiração nunca se dissipará. Ao devorar livros, engula-os saboreando toda a escrita que sua mente percebeu que possa vitaminar o seu saber. Aos poucos, sua ânsia por coisas novas crescerá a ponto de todos os livros te encantarem, despertarem em você aqueles olhos que outrora não varavam sequer dez páginas, enquanto outras pessoas devoravam várias. Ao ler, faça compassadamente. Seu pensamento voará às alturas e absorverá o néctar da sapiência e aí, tudo se tornará mais fácil e a inspiração poética fluirá naturalmente.  Quando você começar uma frase mesmo sem nexo, pode ter a certeza que ao final, revisando cada palavra, você finalizará com sucesso o seu texto, portanto, não se aquiete, pegue uma folha de papel ou sente-se à frente do seu computador, use o teclado e digite. Pense no mundo que o rodeia, pense naquela beleza inspiradora que a gente destacou no preâmbulo, e fazendo isso, notará que seus dedos correrão a uma velocidade incrível e martelarão as teclas com desenvoltura e no monitor, aparecerá automaticamente um amontoado de palavras e nelas, brotarão sentimentos que só um poeta é capaz de sentir e ter a inspiração necessária que certamente, jorrará aos borbotões e que serão gravadas em sua memória para sempre.

Hoje estou voado sem as asas da imaginação porque achei não ser necessário usá-las. Porque em toda parte encontro palavras para lhe incutir o saber. Sabemos que até para se entrar numa Universidade um dos pontos prioritários é saber escrever, é interpretar textos. Então porque não exercitar a memória e saber que tudo está sobre o seu alcance e você com vontade de aprender. Existem as realidades e mistérios decorrentes de cada coisa escrita, por um mínimo que seja e não importa o autor, sempre existirão. Realidades e mistérios dos quais agora também você fará parte se começar a escrever. É claro que vamos entender quando escrever o seu primeiro texto, romance, contos, crônicas ou poesias; entender de que não existirão neles como realidade, o palpável, mas sabendo que existirá a importância do começo e a partir daí viverás a dimensão do seu próprio saber sem precisar de asas para voar.

O cego e o vaga-lume

terça-feira, 20 de novembro de 2012


Ninguém melhor que aquele cego sabia como fluir. Usava movimentos coordenados, sensitivos, ponteava sua bengala de alumínio sobre o chão com um propósito de achar o equilíbrio entre a luz e a escuridão. Também, ninguém melhor que o vaga-lume para entender o quão importante é para ele a noite e que todo seu ciclo começa justamente com a escuridão, assim como a noite é o começo do dia e dá lugar à sua luz, o outro ciclo vale somente para despertar o mundo ao amanhecer. Aqueles que enxergam, mas se mantém escuridão, não estão cônscios de onde estão, ou que existe uma presença de luz com que eles podem se conectar, mas, insensíveis, não conectam. É como se estivessem com os olhos vendados sem o real desejo e a coragem de tentar retirar a venda. Diferententemente do vaga-lume o cego vive a escuridão, mas está cônscio do lugar em que se encontra, não importa o lugar, seja dia ou noite; ele tateia paredes, ouve sons e vozes e sabe onde está; sobe escadas e ainda tem a sensibilidade de enxergar aquilo que a gente não vê. Como diz o ditado popular: “O pior cego é aquele que não quer ver”, porque ver o que é óbvio todo mundo consegue, e assim podemos afirmar que vivemos num mundo onde a aparência e o status contam muito. Mas, é pura ilusão! Uma satisfação temporária. Muitos não veem que os sentimentos são coisas mais preciosas e duradouras do que o egoísmo e a mesquinharia que estão embutidos na ambição de se dar bem a qualquer custo, mas que, como num flash sabem que pode desaparecer num pestanejar de olhos.

O vaga-lume desfaz toda essa teoria de cegueira humana, pois quer enxergar, não obstante tenha apenas a noite para testemunhar a sua luminosidade. A luz que sai do seu corpo na verdade, são “lanternas” que usa para iluminar o habitat onde circula. A luz que emite é contínua. Na lanterna torácica, a luz tem uma tonalidade esverdeada. Na lanterna abdominal, é amarelo-alaranjada. Então sob este prisma, a experiência vivida pelo cego e o vagalume precisa ser concluída com eficácia antes que possa haver um ensaio de luz e enseje uma progressão gradual da escuridão para que ela aconteça dentro de cada um de nós, de acordo com o nosso desejo e do nosso poder-viver na escuridão.

Certa noite, ao descer do ônibus, o cego perdeu o seu trajeto costumeiro e andou a esmo. Passou pelo mesmo caminho várias vezes. O vaga-lume observava aquele transeunte que manuseava uma vara com uma ponta de alumínio para se locomover e condoeu-se. Convocou outros vaga-lumes formando um verdadeiro exército e centenas de lanterninhas iluminaram a estrada. Sensitivo, que é peculiar aos cegos, contornou a estrada, voltou ao seu trajeto normal e em poucos minutos já estava abrindo o pequeno portão. Foi uma demonstração clara de que não queria ser “o pior cego” tão decantado pelos preconceituosos, que muitas vezes cegam-se diante do seu próprio mundo, tornam incapacitados, limitados ao ponto de não conseguirem repensar suas vidas ou falar sobre si mesmos. A ação dos vaga-lumes e o cego mostram quão poderosos podem ser a escuridão, uns temem a luz porque acreditam que se trocarem a escuridão pela luz, precisam também trocar o poder pela fraqueza. Outros nunca fazem essa escolha não obstante saber que esse é o seu papel na Terra, porque há os que precisam manter a escuridão, visto ser uma escolha que cada um pode fazer, e a escuridão precisa estar presente para equilibrar a luz. Cada um tem o seu contrato firmado com o destino, e o compromisso para o bem servir, e isto é pura verdade. 

Há pessoas que só escolhem a luz porque temem a escuridão. Há pessoas que adotam a paz e a quietude da luz, mas ignoram o seu poder, porque acreditam que o poder faz parte da escuridão. Entretanto, ambas as energias têm poder, mas, ditam normas e modos diferentes. O poder da escuridão é controlador e maléfico ao ser humano; o da luz é solidário e bondoso. A escuridão governa por meio do medo, endivida-nos com o mal e nos leva ao divã; a luz reina através da natureza divina que não exige dispêndio. Então, pode-se afirmar que, se a pessoa humana souber receber a verdadeira luz, se tornará poderosa e lhe permitirá brilhar como o vaga-lume faz no seu habitat.

Sabemos que a escuridão cumpre a sua finalidade, como o de fazer brilhar os vaga-lumes, as estrelas, a lua, as lâmpadas, os faróis e cada coisa no Universo. O seu propósito é alinhá-los internamente com o seu ego e assim a luz se expande para o seu espírito. A escuridão faz com que se lembrem das limitações e controle pessoal como aconteceu com aquele cego; a luz é ilimitada e os convida a render-se. Eu já me rendi. Então pergunto: Qual é a sua escolha mais poderosa? É essa que é a realização de cura e do desejo de totalidade da sua alma a cada momento, que pode ser escuro ou claro, ou ambos. Não julguem as suas escolhas e não seja como aquele que mesmo sabendo existir alguma coisa não quer ver, ou então, tente pelos menos permanecer com a consciência naquilo que deseja criar e deixe que as energias fluam, luz e escuridão, à medida de sua própria realidade, do jeito que sempre sonhou em viver na Terra, mas sabendo que o nosso Pai Celestial pede, a livre arbítrio, que você acolha essa luz em toda sua plenitude. 

O Vacilão

terça-feira, 13 de novembro de 2012


Ildo Marcel sabia escrever e bem. Algumas vezes lia com curiosidade parte de jornais que achava jogados nas calçadas e fazia algumas notações no seu caderno comentando sobre as notícias e cenas horripilantes do dia-a-dia, retratadas em letras e fotos garrafais. No seu pequeno caderno tinha a sensibilidade de descrever, mesmo nas horas mortas, as sombras que se movia nas esquinas, sobre o cheiro das flores que vinham dos jardins e o gosto dos frutos que retirava dos quintais. Com a caneta presa na orelha, caminhava olhando para os lados, arqueando as sobrancelhas grossas, enquanto os cabelos anelados nem se mexiam com o vento. Há dias não os lavavam. Em cada vulto, procurava retratar a sua mãe, a quem não via há mais de cinco anos. Cabisbaixo e com a saudade estampada no rosto, deu uma baforada, escondeu o cachimbo no tronco de uma árvore e seguiu em direção ao Condomínio Residencial que ficava a pouco mais de dois quilômetros do centro cidade, forçando a perna esquerda prejudicada por uma paralisia infantil. Sabia que a sua mãe e irmã ainda moravam lá, mesmo diante das dificuldades financeiras.

Cansado de tantas andanças, Ildo tomou uma decisão. Resolveu voltar para casa, pedir perdão e viver ao lado da mãe. O suor escorria pelo rosto enquanto espremia as mãos, deixando à mostra as unhas sujas de terra e manchas escuras sobre os dedos deixadas pela fumaça da maconha que saiam do seu adaptado cachimbo. Perambulando pelas ruas às vezes conseguia um cantinho para dormir mais tranquilo, sem a perturbação de outros meninos de rua que muitas vezes queriam esculachá-lo, mas, esperto, sempre conseguia se safar.

Pensava muito na sua mãe e queria estar com ela. Sabia que ao deixá-la para procurar a tão sonhada liberdade, fora um vacilo seu. Morou nas ruas, drogou-se.  Sentiu raiva e saudade, e às vezes, dominado pelo vício, chorava. Começou a sentir-se só e ele tinha consciência da burrada que dera. Tinha um lar perfeito, uma mãe carinhosa, mas os “amigos” o drogaram e convenceram-no a ter a tão propalada liberdade. No caminho de retorno, furtou de um quintal uma camisa e trocou com a sua já maltrapilha que também furtara há meses. Com a calça caindo sobre a bunda e tênis surrado, continuou andando pelas ruas e avenidas enquanto o povo o olhava com certo desdém. Sentia-se um “João Ninguém” e até o sol que queimava o seu rosto imberbe parecia indiferente. 

A maior parte do tempo ficava usando drogas para esquecer a vida, roubava para manter o próprio vício, apanhou e estava sempre sendo observado pelos traficantes e os olhos sisudos da lei. Foi preso por uso de drogas e depois que saiu do reformatório logo voltou para a rua. Dizia alto e em bom som que não era passarinho para ficar preso em gaiola. Às vezes, ficava vendo garotas e garotos indo à escola, achava bonito e até pensava que se tivesse ido talvez a sua vida fosse diferente e hoje não estaria usando drogas, roubando e dormindo em becos sujos, entregue a própria sorte e de certa forma, esperando a cortina do tempo se fechar sem antes tomar uma atitude de mudança. Ainda era em tempo, pois tinha apenas dezesseis anos e ademais, era herdeiro de um lar que outrora vivia em crise, hoje não.

Ao entrar na casa viu sobre a estante a fisionomia de uma infância feliz imortalizada numa fotografia: Era ele de cabelos castanhos encaracolados, com oito anos de idade, fazendo pose em cima da porteira de uma fazenda que sequer lembrava qual. O sorriso eternizado no único retrato de sua infância conta um pouco de sua história. A foto foi tirada dias antes da separação dos pais, uma perda não superada pelo menino. Com a separação começaram as fugas que se tornaram rotina. Era jovem demais para entender. A sua mãe tentou explicar o motivo da separação. O marido era alcoólatra, agressivo, lhe batia e perdera o emprego em razão do alcoolismo. Era visível que as marcas da violência incomodavam sua mãe toda vez que ela se olhava no espelho. 

Ildo, mesmo arredio, recebeu o abraço carinhoso da mãe. Depois subiu aos aposentos e tomou banho, deitou-se sobre o lençol branco estendido sobre a cama. Depois, diante do sorriso angelical de sua mãe, saboreou o que gostava: arroz carreteiro, feijão preto e um suculento frango a molho pardo com pequi. Ainda arredio subiu novamente ao quarto, olhou pela janela e viu o dia ser engolido pela noite e cansado, deitou novamente sobre a cama. Dormiu. Quando despertou, começou a desenhar tudo o que vira durante o lapso de tempo em que se tornara um menino de rua. Usando formas coloridas, reproduzia com fidelidade os detalhes de cada peça, as copas das árvores floridas e suas sombras, sejam formadas pela luminosidade solar ou pela lua; reproduzia os meninos e meninas de rua deitados sobre as calçadas, os canteiros das praças e jardins, as aves que se alvoroçavam nos galhos, as quais, alegres e cantantes, pareciam querer motivá-lo a lutar pela vida, mas, tudo de certo modo parecia ser em vão. Deixou os desenhos de lado e mirou a mochila que estava sobre a escrivaninha. Abriu-a. Manuseou os velhos cadernos e junto deles colocou aquele que carregara durante aqueles anos. As aulas começariam na segunda-feira, Ildo ficou pensativo por instantes e aí, repentinamente, sentindo um desejo incontrolável que lhe produzia suor, ansiedade e que corroíam suas entranhas, pegou a mochila, olhou pela janela e antes do sol se pôr, surrupiou alguns reais na bolsa de sua mãe e fugiu. Da nada adiantou o carinho dela. Vacilou mais uma vez. Lá fora, algo mais poderoso o esperava, não resistiu à falta do famigerado crack. Meses depois a televisão noticiava sobre um corpo franzino que jazia num beco escuro com uma perfuração no peito, apenas uma bala tirou-lhe a vida. Era Ildo que vacilou mais uma vez não pagando a um traficante.


Simplesmente Cansei!

terça-feira, 6 de novembro de 2012


Hoje levantei sem otimismo e não conseguia ver as coisas do modo que elas são. Senti-me cansado e ”p” da vida. Cansado de tudo, do mundo real, do palpável, do prático, do imaginário, do surreal. Cansei da visão fantasiosa sempre contrária ao mundo real. Cansei do trabalho maçante e de tudo aquilo que estressa; cansei de reclamar do errado e das coisas erradas, cansei daqueles que fazem denúncias vazias, caluniosas, difamatórias e não enxergam o seu próprio umbigo ou o umbigo do Órgão, Entidade ou Ministério em que trabalham. Cansei da escada tortuosa construída até aquele andar onde esperava alguém descer, apenas descer. Cansei de passar pelo mesmo trajeto onde passam os imprudentes que irresponsavelmente fazem zigue-zague com seus veículos na avenida. Cansei do bonito que a natureza mostra, mas sempre é desrespeitada; cansei da ilusão de beleza que se vê em cada rosto. Cansei, cansei mesmo! Cansei das mesmas notícias que são veiculadas diariamente nas telas de TV e das novelas que levam mau exemplo aos lares brasileiros. Cansei da leitura de páginas de jornal, das vozes de alguns radialistas e apresentadores que judiam de nossa língua portuguesa, as quais surfam nas ondas do rádio maltratando nossos ouvidos. Cansei das desgraças que são repetidas nessas parafernálias eletrônicas, onde uns copiam cenas de outros e outros, querendo ser mais engenhosos, encenam o mesmo ato criminoso só que usam apenas outras posições, fazem montagens inversas, destacam o choro em outros tons e destoa a comoção no verso e anverso da fita gravada. Destacam um surpreendente julgamento que ao final sabem que ele poderá tornar-se uma pizza, recheada de votos “pensados”, extraídos de códigos defasados que são descritos na plácida sentença que se o povo tiver juízo não aceitará. Cansei da forma em que retratam a comoção de um povo, do falso novo, do falso velho e principalmente, do anverso dos dois porque quando colocados inversamente são definidos pelo Aurélio como falsos. Cansei do que os olhos são capazes de enxergar perto ou à longa distância. De perto, tenho que usar óculos de grau, e isto me cansa; de longe, enxergo coisas que não deveria enxergar; coisas que não presta e aí me constranjo, canso.

Hoje eu quero é algo diferente que vai além daquilo que penso. Quero o poder da premonição, de ver o futuro, sem desfazer do presente. No teatro da vida quero a inversão de papéis entre atores e atrizes, sem que haja a inversão de valores e o texto na tela interpretado não vire realidade e a realidade mostrada, não vire sonhos amorais ou imorais, e se virarem, que sejam distante de minha realidade. Entendo que devemos respirar novos ares, ter novos hábitos, ideias, emoções, desejos, pensamentos, isto é tudo que quero. Quem sabe se isso vir a acontecer tudo possa ser diferente em relação ao que temos hoje, se não pudermos ter, então serei obrigado a desejar que o hoje renasça novamente.

Mas, quão difícil ser diferente e não cansar de tudo. Quando chegamos à casa a primeira coisa que ouvimos é o zunido do elevador, o tic-tac do relógio, a torneira que mesmo fechada insiste em soltar gotas fazendo barulho sobre um vasilhame, um som rouco: tum... tum..., nem paro para contabilizar os ruídos. É justo. Estou cansado. Nunca importei muito com o que acontecia ao meu redor, mas, hoje, dou atenção aos mínimos detalhes. É o cansaço. Quando sento à mesa e sirvo-me com um pouco de café adoçado com algumas gotas dietéticas e pão francês, então aí me acalmo. Ainda bem que a gota dietética é silenciosa.  Tomo o café e com um sorriso inacabado ligo a TV. Novamente aparecem as desgraças de ontem reprisadas hoje. Mudo de canal e lá vêm outras notícias e digo: espera ai! Eram as mesmas cenas do outro canal, e então percebo que a minha mente poderia estar atabalhoada. Aquela reprise não era real. Desligo a maldita TV. Vou ao quarto e olho no espelho para ver se estava apresentável, pois o trabalho me esperava. Mirei fundo nos meus próprios olhos que se arregalavam diante do espelho e vi-me vítima da rotina que eu mesmo criei. Eles também estavam cansados. Coloquei a gravata e sai. Pode ter sido só mais um dia ou poderá ser o último se pudesse prever o meu futuro, mas o que importa é que eu nada planejei.

Quando disse no preâmbulo que cansei do imaginário, não posso afirmar isso em relação aos amigos e amigas imaginários, pois eles são como os sonhos: estão com a gente aonde quer que estejamos; aonde a gente quer estar, e ninguém pode podá-los ou impedi-los de existir, pois só nós o vemos e acreditamos neles. Os amigos que me acompanham pelas ruas solitárias da vida nunca me deixam no meio do caminho e me impedem de ficar sozinho, porque somos pessoas que correm atrás de um propósito, de um desiderato para continuar andando em busca de um caminho cheio de luz, não só os iluminados pelos raios do sol ou pelo os da lua, mas também, em busca daquela luz que brota dos lindos olhos de alguém, alguém que nos espera diariamente e nunca nos cansará. À bem da verdade, acreditar no improvável, no impossível e no imaginário sempre foi meu norte. É bom viver no mundo dos sonhos, mas hoje eu cansei.

Realmente cansei. Parece que estou com uma grade em meus olhos. Uma grade embaçada que me impede de enxergar e de ver o óbvio. E assim sou obrigado a me manter parado, sem dar um passo à frente ou para trás, talvez por medo de cair num precipício que a própria vida constrói. Essa grade está repleta de memórias insolúveis, indecifráveis, uma grade que me isola do mundo, que impede meu coração de bater como antes batia. Tudo isso me fere. Neste lapso de tempo posso ter caminhado por estradas tortas e deitado sobre relvas sombreadas por galhos secos de árvores milenares, sem esperança de obter certezas e ouvir melodias tocadas e cantadas por alguém que não existia e que eu mesmo inventava. E olha que me preocupo com o vozerio de vozes e sons que vem das ruas, do zuído do elevador, de cada gota que cai da torneira, do chuveiro, do tic-tac do relógio ou dos noticiários dos jornais, rádios e TV, mas, tudo isto, não faz de mim um ser insensível, incapaz de enxergar o sorriso angelical de alguém ou as lágrimas que saem dos olhos da minha amada que dada a sua firmeza de espírito jamais as deixa cair ao chão. Leitor, não se deixe sangrar por essas palavras. Não se deixe sangrar mesmo, pois no fim a verdade sempre aparecerá, e as que tento expressar, pode ser apenas uma situação momentânea a mim postergada por alguma coisa surreal ou um ente estranho, que me cansou e fez com que eu criasse situações fantasiosas extraídas de um mundo que não se sabe se é ou não real. 

Diário de um sobrevivente.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Apenas um pedido de perdão...
 
 
JESUS, não é meu costume, mas hoje resolvi ir a uma balada. Antes de sair de casa fiz uma leitura bíblica e o sinal da cruz pedindo Sua proteção, pois o mundo está cheio de perigos, de gente maldosa e uma violência que se expande por toda a cidade. Em razão disso, ainda fiz questão de me lembrar de um anúncio televisivo que dizia: “Se beber não dirija” ou “Se dirigir não beba”. O meu pai insistentemente me pedia para que eu não tomasse bebida alcoólica, hoje, então, pela primeira vez obedeci. Não bebi Senhor Jesus! Posso dizer que senti orgulho de mim mesmo, e do modo que li o texto bíblico, o qual por incrível que pareça, deu a entender que mesmo se eu não bebesse correria algum perigo. Dizia: “Todos vão para um lugar; todos foram feitos do pó, e todos voltarão ao pó.” Eclesiastes 3:20. Era prenúncio de alguma coisa que poderia acontecer. Entendo que fiz uma escolha certa, saudável, e no clube, bebi somente refrigerantes, ao contrário de alguns “amigos” que “encheram a cara” e ainda me diziam que eu era um tolo. E quanto à festa, finalmente acabou eu só sei que saí sóbrio, enquanto alguns saíram cambaleantes, dirigindo seus veículos sem as mínimas condições… Estavam totalmente bêbados. Tentei controlar a situação e até me propus a levá-los até as suas casas, mas, tudo fora em vão. Fui para o meu carro, certo que voltaria em paz, com a consciência tranquila, entretanto, nunca poderia imaginar o que estava me aguardando, algo que eu jamais poderia esperar. Nem bem alcancei o outro lado da rua o meu corpo sentiu um impacto violento. Fui atropelado por um carro e jogado sobre calçada, e depois, ainda com alguma percepção, ouvi um policial dizer: - O rapaz que causou este acidente estava bêbado e parece que era amigo deste jovem. A minha mente ia e voltava numa velocidade surpreendente e fazia lembrar-me do texto bíblico, enquanto via o rosto de Jesus que resplandecia diante da pequena luminosidade que contrastava com uma lâmpada de mercúrio, e sua voz branda não parecia distante… Meu sangue escorria por todos os lados e tentava com todas as minhas forças, suportar a dor. Ainda consegui ouvir os paramédicos dizerem: – Este jovem se não for atendido imediatamente pode morrer. Atordoado com tantos sussurros tinha a certeza de que o amigo que me atropelou não tinha a menor ideia da velocidade que empreendera ao seu veículo, afinal, estava dominado pela bebida, e agora eu é que sofria as consequências! Por que as pessoas fazem isso, perguntei a Jesus? Sabem que isto pode arruinar vidas, destruir famílias? Minutos depois senti a maca atravessar um enorme corredor e luzes passarem velozmente fazendo arderem meus olhos. A dor ia me cortando como se fossem milhares de agulhas grandes e afiadas… Eu clamava a Jesus! Pedi ao Teu espírito generoso que fizesse chegar mensagem espiritual aos meus pais, quebrantando-os para não se assustarem. Pedi a Jesus que transformasse meu pai numa fortaleza e que ele não sofresse, e à minha mãe, que escrevesse na minha lápide o amor que sentia por ela.
 
Como meu pai me alertou alguém naquele dia deveria ter dito também a aquele jovem que é errado beber e dirigir. Talvez, se alguém ou seus pais o tivesse alertado, eu não teria sido acidentado e não me tornaria deficiente.
 
A minha respiração estava ficando mais fraca e aí disse a Jesus: - Estou ficando com medo… E o seu rosto continuava lá resplandecente, atento a tudo e isto eu podia observar, mas, continuava murmurando: - Se estes são meus momentos finais Jesus, afirmo-lhe que ainda me sinto despreparado...! Mas, eu gostaria de poder abraçar o meu pai… Nunca fizemos isso. Então, enquanto estou estirado sobre esta calçada gostaria de poder pedir-lhe perdão e dizer-lhe, mesmo em razões de nossas desavenças, que eu o amo!  Eu o amo muito, muito mesmo! A dor aumentou e então desmaiei.
 
Dias se passaram. Acordei de um coma profundo e no portal de entrada do quarto logo avistei uma luz que indicava: UTI. As minhas pernas não se moviam, o rosto enfaixado e respirando por aparelhos, os braços presos numa parafernália eletrônica recebia soro controlando resquícios de vida. Ao lado da cama uma cadeira de rodas já me aguardava. E agora, pensei? O desespero tomou-me o corpo. Lembrei do acontecido e não conseguia apagar da memória nenhuma cena, mas, de repente recebi um abraço afetuoso do meu pai, como pedira quando estava extasiado e o corpo dormente naquela calçada. Meu pai com os olhos lacrimejados e fisionomia abalada, trasmitia angústia, desespero e dor; dos seus olhos saíam flashes como se fosse uma máquina fotográfica  mostrando bebuns e bebidas, e  não sei como, elas desapareciam a cada piscada como se estivessem sendo sugadas pela sua retina e amparadas pelo sôfrego globo ocular. Mas, uma conseguiu descer pelo seu rosto já carcomido pelas intempéries do tempo e caiu  sobre o lençol branco. E emocionado me disse: Carlos, meu filho, sabe que eu te amo muito! Me perdoe. Suas palavras acalentou meu coração e eu retribui aquele gesto abraçando-o carinhosamente. 

Naquele dia não descartei Descartes.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Ao iniciar este texto senti-me na obrigação de intitulá-lo desta maneira, em outras palavras, citando filósofo francês René Descartes que criou o princípio fundamental de toda a certeza racionalista. Ao manusear meus livros tive realmente a certeza de que não poderia descartar a sua teoria sintetizada na famosa frase “Penso, logo existo”. Parei por instantes enquanto o silêncio dominava aquele pequeno escritório. Olhei para a estante, peguei alguns livros e artigos publicados no Diário da Manhã. O primeiro selecionado foi “Paixão e Morte em Serra Canastra”, e relendo parte do texto, deparei com personagens que nem mais lembrava os nomes, e depois, “Uma Pedra no Caminho” e no meio da leitura, outras personagens se aproximaram e pareciam querer matar saudade. Sentia acenarem para mim e emocionado, fechei o livro. No canto da estante o “O Mistério do Morro do Além” espremidinho entre o “Espelho das Águas” e o livro “Antes que o Sol Beije o Vão da Janela”.  Como se tratava de um fato inusitado eu tive que prender a respiração para tentar explicar aos personagens que a missão do escritor é fazer daquilo que escreve algo que as pessoas que os leem acreditem ser real. Disse-lhes que ao fazer da história de cada um deles ela seria o mais real possível, não obstante vivermos num mundo mágico onde a realidade se confunde com a ficção e que, por vezes, também acreditamos naquilo que a nossa imaginação dita. Mas, hão de entender que o escritor é escravo de seu próprio pensamento e este o rodeia o tempo todo, não importa se está com a mente cansada ou envolta por nefastos trabalhos laborais.  Ele pensa e muito. E quando pensa, nem vê as gotas de chuva se espatifar sobre o vidro da janela, nem o sol e a lua nascerem ou se pôr soberbos, nem os cânticos e alvoroços dos pássaros sobre as árvores, ou outro ruído qualquer, o pensamento interfere e injeta no escritor sensibilidade, o faz viajar pelo mundo da imaginação, o faz prosear consigo mesmo e diante do computador, escrever sobre a beleza de tudo aquilo que circunda o seu universo. Quando faz sol, o pensamento incita-o, e ele, poeticamente, descreve o encantamento de sua rota, a sua subida e descida majestosa no horizonte; descreve com singeleza a mulher-mãe lavando roupas e pendurando no varal da vida suas angústias e incertezas; ameniza o latido do cão, o som dos veículos que passam rente a janela, e no compasso e descompasso dos sons, nem é capaz de ouvir a voz meiga de uma criança que brinca sossegadamente no jardim.

E, naquele dia o pensamento resolveu fazer-me escravo de meus personagens e à medida que relia cada livro, foram chegando um a um ou uma a uma, e atônito, fiquei por instantes buscando palavras que pudesse amenizar aquele encontro inusitado entre eu e meus personagens.  Como retrucar meu pensamento e dizer a eles que tudo que escrevia era no afã de superar a ficção para tornar bem real o que escrevia, mesmo sendo trágico o final? Como dizer àqueles personagens que muitas vezes fiquei indeciso quando terminei de escrever e que tive que alterar o final, eliminar alguém, mas era vencido pela vaidade de ter conseguido atingir o clímax pretendido?

Mas, diante deles as palavras embaralhavam na minha mente. Não conseguia balbuciar nenhuma palavra. Só depois de horas lembro que balbuciei alguma coisa. Depois, falei, falei..., e ela, a minha personagem predileta estava ali quietinha me observando como se tivesse absorvido cada palavra e me perguntou: Então eu não sou real? Eu vivo apenas na sua imaginação e é por isso você me deixou sozinha naquele mundo inóspito? Novamente fico sem ação e tenho vontade de abraçá-la, mas, ela se recolhe num canto, uma ação momentânea que meus olhos aceitaram como se fosse um pedido de perdão.

Como explicar aos meus personagens, ao in memorian filósofo René Descartes e a vocês a minha evolução. Deixe-me, então, fazer um pequeno contraponto contando algumas histórias de minha geração que originou o grande movimento denominado de jovem guarda. Pertenci a uma geração que pode ser taxada de romântica, mas que se insurgiu contra a ditadura do excesso de consumo, contra uma rigidez de costumes, contra um autoritarismo dominante que aniquilava qualquer tentativa de criatividade, de experimentação, e o que dizer então de liberdade… O refrão em voga naquela época era “Faça amor, não faça a guerra”. Foi uma mudança radical. A moda de então estava de acordo com o fluir do corpo. O cabelo feito topete era endurecido com brilhantina e nem o vento o movia, as roupas de tergal e jeans, singulares, sugadas e coloridas, ficavam soltas, facilitavam os movimentos, como as calças “boca de sino” e colarinhos altos, era um show nas baladas e rock and roll.

Hoje, apesar de tudo o que se fale em termos de liberdade, o que vemos em todos os lugares são pessoas bem vestidas, homens e mulheres. Roupa curta bem colada no corpo amarrando os movimentos. Sapatos de plataforma, altíssimos, constituindo-se na freguesia-mor dos ortopedistas. E é absolutamente indispensável que tudo seja proveniente de grifes famosa. Os paradigmas que surgem são cambiantes. Em outros tempos, a dedicação a uma causa, estudo ou profissão, era um critério básico para o sucesso pessoal e profissional. O que se busca hoje é o exercício de certa “esperteza”, do suborno e das propinas que cortam atalhos… Hoje percebemos uma dessacralização de tudo que a nossa geração julgou ou julga serem valores incontestáveis.  Tempos idos, o nosso espelho eram olhos amigos e amorosos em que cada pessoa podia se vir confirmada e aprovada em sua singularidade, sentindo-se tão mais perfeita quanto mais parecida com ela mesma.

Então, queridos personagens, me desculpem por manusear novamente os livros apenas esta noite, mas, neste encontro surreal, convido-os a virem comigo, e seguindo a antiga tradição, buscar a quietude, dar espaço para o mergulho imaginário e consultar à biblioteca virtual, a qual me facilitou com uso de senhas, guardar meus escritos e seus nomes para a eternidade. Em meu subconsciente que embora só seja visitado em situações de crise, o pensamento estará lá, sempre, esperando com a porta aberta para levá-los ao encantamento do mundo da imaginação, pois, para quem sabe pensar tem consciência de si mesmo, ou se pensa, como disse o filósofo René Descartes, logo sabe, ou se pensa, logo terá consciência, se pensa, logo saberá algo certo, por isso, quando escrevo, sou forçado a pensar e se penso, logo existo.

A margarida e o beija-flor

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Passando por uma rua que findava num vale, vi uma casa sem número, construída num canto que quase ninguém notava. Lá dentro pairava um silêncio absoluto, profundo. Olhei para um pasto verde pouco à frente e parei. Com o semblante e boca travados, estacionei o carro e fiquei ali inerte, mudo, enquanto minha mente cobrava de mim uma mensagem bíblica que tinha ouvido na missa dedicada à família Bandico, afinal, era numerosa, unida, que naquele dia festejava seu 1.º Encontro. Na frente daquela casa avistei um jardim cheio de flores, cercado de um gradil e uma paliçada verde; e num canto, no meio da erva fresca, floria uma pequena margarida. O sol a aquecia com seus raios, e assim como às outras flores do jardim ela se desenvolvia minuto a minuto. Dizem que numa certa manhã apareceu do nada, inteiramente aberta, com suas pequenas pétalas brancas e brilhantes, e no meio delas, uma miniatura de sol rodeado de pétalas brancas, e somente na sofreguidão do calor solar e diante da impertinência de um beija-flor é que ela se inquietava.

Mas, mesmo assim, a pequena margarida estava feliz, embora não recebesse nenhuma gota de água. Enquanto as crianças passavam silenciosas, ela, sustentada por seu caule verde, apreciava a beleza da natureza e a bondade de Deus. Parecia-lhe que tudo o que sentia em silêncio o pequeno beija-flor exprimia na sua ansiedade, tentando bicar-lhe e tirar seus polens e ínfimos néctares. Ela olhava receosa aquela ágil ave que girava em torno de si na ansiedade de alcançar seu objetivo: o mel


Ficava injuriada, pois dentro do jardim havia uma quantidade de flores lindas, viçosas e aquele beija-flor parecia se encantar somente com ela; as outras flores se inflavam a fim de parecerem maiores do que as rosas; mas não é o tamanho que faz a flor. Elas brilhavam pela beleza de suas cores e se pavoneavam com pretensão; não se dignavam lançar um olhar sobre a pequena margarida ali no canto do jardim, mas, ela, dentro de sua humildade, ainda as admirava dizendo: Corno são belas!  Mas, porque o beija-flor insiste somente em me bicar, me ferir e destruir minhas pétalas. Questionava. E, no mesmo instante, o veloz pássaro levantava seu voo, não rumo às outras flores, mas para a grama ao lado da pobre margarida, que, irada, não sabia mais o que fazer. O pássaro começou a girar novamente em volta dela com o zunido irritante de suas asas e ainda dizia: Mesmo sem o cheiro daquelas petulantes rosas, encantei foi com você florzinha de pétalas brancas!

Não se pode fazer uma ideia da bondade da pequena flor. O beija-flor a beijou com seu bico, girou freneticamente, depois subiu para o azul do céu levando em suas asas o branco pólen. As horas passaram e a margarida não conseguia refazer da sua emoção. Já estava gostando daquele infeliz. Sentiu-se um pouco envergonhada, mas orgulhosa. Olhou para as outras flores do jardim que foram desdenhadas por aquele pássaro. Sabia que elas tinham testemunhado a honra recebida e da qual que fora alvo dele. Elas deveriam compreender a justeza de sua alegria, mas as rosas estavam mais sérias do que antes e as suas pétalas vermelhas e curvadas para dentro exprimiam seus despeitos. Outras flores de somenos importância levantavam a cabeça com soberba. Que sorte da margaridinha elas não poderem falar!  Teriam dito coisas bem desagradáveis.
 

Comentam que no dia anterior, uma menina armada de uma grande faca afiada e brilhante entrou no jardim, aproximou-se das rosas e cortou algumas. A margarida safou-se talvez pela sua insignificância. Mas, feliz por ter ficado sozinha naquele jardim. O sol se pôs, margarida adormeceu e sonhou a noite inteira com o inquieto beija-flor voando pelos campos verdejantes, feliz.

Acordou e viu aproximar um menino portando uma enxada e logo começou a perfurar o chão em sua volta. A cada enxadada margarida tremia de medo. Ser arrancada dali significava perder a vida; e ela gostava tanto daquele espaço e por sorte, foi poupada com a chegada do jardineiro. O menino saiu correndo. E assim ela sobreviveu mais dia.

No final da tarde alguém de supetão, lhe mergulhou o bico. Era o irreverente beija-flor que fez um sinal amistoso e disse ao beijá-la: Você sim, pequena flor, não perecerá aqui!  Ninguém vai lhe fazer nenhum mal e em troca vou adubar suas raízes. Você vai se fortalecer e cada uma de suas pétalas brancas rejuvenescerá, não terão mais o temível odor, e o perfume que sair do seu seio, será inebriante, e quando for levado pelo vento, aromatizarão todos os jardins de nossas existências.

O beija-flor foi aprisionado pelo menino e colocado numa gaiola. A noite chegou, veio o dia e anoiteceu novamente. Ninguém estava lá para levar alimento e água para o pobre pássaro. Então ele abriu suas belas asas sacudindo-as convulsivamente e fez ouvir uma pequena canção melancólica, fúnebre, vinda não sabe de onde. Sua cabecinha se inclinou para a flor e seu coração ferido de desejo e de dor parou de bater. A esse triste espetáculo, a margaridinha não pôde, como na véspera, fechar suas pétalas para dormir; e traspassada pela tristeza, também se curvou ao solo.

O menino apareceu dias depois e ao ver o pássaro morto, chorou copiosamente. Colocou o corpo do beija-flor numa caixa de sapato e o enterrou no jardim. Sobre o túmulo semeou pétalas brancas. Pobre margarida!  Suas pétalas serviram de honrarias, mas, mesmo assim, despedaçada, estava feliz, pois ninguém, a não ser ela, sabia o quanto ele era importante naquele pequeno jardim. Passara a amá-lo ternamente.

Por incrível, lá dentro morava uma mulher de nome Margarida e o esposo com sobrenome Flores. Ela também possuía uma luz irradiante e Flores encontrou nela o sentimento da força inconteste de uma margarida-flor, uma mulher madura, boa esposa, boa filha, boa mãe, amiga e extremamente prestativa. Como aquela margarida que desfalecera por amor, ela também representava esse sentimento porque trazia o significado da inocência, da sensibilidade e da nobreza. Talvez, quando usava um vestido branco, transmitia a paz como aquela pequena margarida, e sem querer contrastar com o sobrenome Flores, que são multicores, eles hão de entender que precisavam de um jardim renovado, regados de amor, sobriedade, humildade, sabedoria e paz. E embasado nestes sentimentos não há jardim que feche as portas e nem flores e margaridas que murchem, pelo contrário, as portas de suas novas moradas ou quaisquer outras que venham construir, estarão sempre abertas e surgirão novas margaridas e flores enquanto souberem regar com amor os jardins de suas vidas.

O Andarilho, o Cajado e a Bengala

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Ao sentar diante do computador nem me preocupei saber que dia era. Só percebi que era noite quando o clarão da lua passou efêmero rente à janela sem fazer nenhum alarde. Não ouvia sons de veículos, apenas os emitidos pelas pequeninas gotas de chuvas, extemporâneas, que se debatiam no vidro da janela e logo eram levadas pelo vento. Aquietei-me por instantes. De repente, lembrei-me de um idoso na fila de um Banco com o olhar perdido na escuridão do seu próprio ser. Com o rosto carcomido pelas intempéries do tempo esperava ansioso sentado numa cadeira e com o olhar voltado para uma TV na esperança de ver anunciado o número de sua senha. Uma fila enorme com um atendente apenas. Era demais para ele, assim como era enganoso aquele símbolo de um idoso apoiando-se numa bengala. Uma pessoa de outra fila depois de ser atendida passou pelo idoso e com certo desdém disse: Véi! Esta sua fila num anda e é pura embromação aquele aviso.

Retornando ao mundo virtual, cliquei sobre o Word para escrever mais um artigo, e noutro repente, senti a mão do destino tocar meus ombros fazendo-me lembrar de um andarilho, de corpo curvado e maltrapilho, pegando um galho caído à beira de um caminho. Aquele estranho passava e não deixava de me observar. Eu não era um menino tosco, era esperto e logo percebi que ele iria construir um cajado com aquele galho de angico. Só ele notou que aquele pedaço de madeira no meio do matagal era de lei. Era também perceptível o seu olhar melancólico, olhando para o alto, para as copas das árvores e depois, à sua volta, parecendo conhecer bem aquela estrada.  Observei que ele tinha a sensibilidade de ouvir os pássaros e o barulho do vento passando entre folhagens; de respirar fundo e perceber os diferentes aromas que as flores e frutos produziam. Cheguei perto, dei-lhe água e comida, ele sorriu, agradeceu e seguiu o seu caminho. Certo dia, quando ele retornava, desta vez manuseando compassadamente um cajado, tocando-o firme sobre o chão batido, eu continuava lá, no moirão da porteira, com o olhar voltado para o horizonte poente, mas, certamente, observando-o, assim como, às árvores, as folhagens, as flores que circundavam aquele recanto. Quando ele passava por aquela estrada percebi que o tocar do cajado no chão adquiria um ritmo que dava motivação à sua caminhada. A cada passo batia o cajado no solo levantando poeiras ao vento. O ritmo era uma verdadeira música que tomava conta de meu inconsciente e tornava-se parte de mim. Mas, naquele dia parou diante de mim e me entregou um belo cajado gravado com o Salmo 23: O Senhor é o meu Pastor, nada me faltará..., e novamente seguiu viajem.

Dias se passaram e não mais o vi, assim como, sentia falta do ruído do cajado. E foi em razão da mensagem e desse estranho sentimento que resolvi escrever sobre este tema, que começa assim...

Dias atrás vi o velho Enauro, empresário aposentado, sempre com a costumeira mansidão, sair para seu passeio matinal e junto à porta, pegar o chapéu de palha e a bengala. Coincidentemente, no mesmo momento, do outro lado da rua, saiu Tiziu, o inquieto andarilho, com seu cajado que moldara com esmero. Tempos idos, a bengala era um complemento indispensável aos homens de negócios, fazendeiros ou coronéis. Ela tinha o cabo decorado em prata e nele era gravada as iniciais do proprietário. A bengala tem a sua história. Entretanto, o cajado, desenhado em cavernas, descrito na literatura bíblica, também tem sua história, pois sempre esteve ao lado do homem desde os primórdios da civilização, seja como instrumento de defesa e proteção ou servindo de apoio nas caminhadas intermináveis.  O cajado que o velho Tiziu usava, com o passar dos tempos evoluiu para a bengala, mas, para ele, nada o substituía. Era o complemento do seu braço, o suporte do seu corpo ou de sua própria vida.

O cajado não tinha o cabo dourado como a bengala do nobre Enauro, mas Tiziu o manuseava com maestria. Com a mesma classe que o “malandro” tira o chapéu, ou o detetive pendura o casaco. Na casa dele o cajado tem um lugar certo para repousar. Todos sabiam que os antepassados usavam a bengala como um adereço masculino, tornando-a símbolo de status social, e a partir do século 20, a bengala ganha um caráter mais funcional no auxílio ao cego, apoio ao soldado ferido e braço amigo ao velho trôpego e frágil. Entre os notáveis temos muita gente famosa e entre essas, o legendário Charlie Chaplin e os cavalheiros ingleses, que iam ao teatro usando fraque, cartola e bengala. Já o cajado, não possuiu o mesmo status social, mas amparou desde os primórdios da civilização muita gente humilde em suas caminhadas, ajudou pastorear ovelhas, ajudou aos cristãos percorrerem lugares distantes e inóspitos para pregar o evangelho. Até Jesus teve o seu Cajado e fez dele um símbolo da resistência e da força cristã.

Hoje, caminhando pela estrada da vida tento levar o meu “cajado”, para enfrentar algumas subidas e descidas que ela nos impõe e que só o cajado pode aliviar. Peregrinei a maior parte de seu caminho sozinho, e ainda menino, carreguei nos ombros uma caixa de engraxar sapatos, fui jornaleiro, comerciário, bancário, executivo, servidor público, escritor, ambientalista e hoje, depois de uma estafante Universidade, até me chamam de doutor. Durante essa minha caminhada nada foi capaz de tomar o meu cajado que sempre me firmou no chão. Sim, o cajado talvez tenha sido a minha cruz e eu já fazia parte dele e ele de mim. Ele era a continuação de meus braços, parte integrante de meu corpo e nos tornamos um só.

Talvez seja esta é a razão para o grande apego que os peregrinos ou andarilhos têm ao seu cajado.

Mas, os tempos mudaram. A bengala está perdendo seu encanto ao complementar o vestuário masculino e hoje passou a ser o símbolo do idoso. Dessa forma é agora vista com desdém, só o velho ou o doente faz uso dela. Enauro, infelizmente, foi para outra dimensão e deixou a bengala repousando no mesmo lugar, mas sei que ela continuará no seu braço direito quando cruzar as ruas infinitas do paraíso ou dos caminhos que Deus lhe indicar. Juntos, cajados e bengala ampararam os velhos Enauro e Tiziu por décadas, deixando-lhes conscientes da dependência que tinham dessas peças, hoje, algumas  apenas ornamentais. Elas os conduziram com a elegância dos tempos que não voltam mais… Ao olhar o símbolo do idoso segurando uma bengala ou cajado, postado nos guichês de atendimento por determinação legal, devemos fazer com o maior respeito e tentar retratar com esse olhar o passado de glória de cada um deles, suas lutas insanas pela sobrevivência e a forma intrépida que fizeram para percorrer o caminho de suas existências, usando os cajados e bengalas sem jamais terem medo da derrota ou pressa de chegar à vitória.

Bizuca, o tímido.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Quando Mirella apareceu em Pomares ele só tinha certeza de uma coisa: ela era diferente de todas as garotas da cidade. E as diferenças não estavam apenas na aparência. Tinha certeza que já a havia visto, através de uma TV, numa encenação teatral ou talvez, no mundo de sua própria imaginação. Restava-lhe apenas imaginar. A timidez até nos sonhos o dominava, fazia dele um idiota, mas, às vezes, inquietava-se diante de tanta beleza e aí, era difícil segurá-lo: sonhava sonhos impossíveis com Mirella e ela estava sempre do mesmo jeito, sensual, e no mesmo lugar. O interessante é que jamais a conhecera, entretanto, dizia que ela nos seus sonhos, parecia lhe pedir socorro e ser salva de alguma coisa que não conseguia decifrar, e não decifrava mesmo...
 
Antes de Mirella aparecer naquela manhã de primavera, ele estava contando os meses para deixar a pequena cidade de Pomares, mas agora era diferente: Mirella estava ali à sua frente, ao lado do portão, deslumbrante, com o sorriso solto, envolta por uma densa neblina, mas, ainda dava para ver seus lábios, finos, sem batom. A jovem o olhava e ele retribuía ao mesmo tempo em que desviava os olhos. Ela chegou a sorrir enquanto fitava e ele quase chorou diante da invalidez que o impedia da aproximação. Era uma imagem impactante. Mas, ele já sentia que havia algo entre eles, uma atração que não conseguia explicar. Precisava se aproximar, tocar-lhe às mãos, entender o que estava acontecendo, se tudo aquilo era real ou se coisas surreais estavam sendo geradas pela sua fértil imaginação. Mas, para se aproximar, teria que enfrentar o seu próprio medo e a timidez que travava seus passos e o emudecia; Carol, a empregada, supersticiosa, ao vê-lo estático junto à porta compreendia o seu sentimento. Sabia que desde a morte de sua mãe trancava-se no quarto para manusear o computador e vagar pelo mundo virtual à busca de um elo perdido e que, se o encontrasse, talvez mudasse o seu comportamento e o modo de ser.
 
Será que havia algum segredo, um tipo de segredo que não deveria ficar oculto por muito tempo, estocado num lugar qualquer, próximo a um rio, a um lago, a um jardim florido, num espaço qualquer, terrestre ou sideral, um tipo de segredo que poderia mudar a sua vida? Ah, havia sim, poderia, mas, infelizmente, não conseguia decifrar...

O portão se abriu e mal pode esperar para convidá-la a sair de Pomares, uma cidadezinha pacata construída longe de tudo e no meio do nada. Ele morava com seu pai e a empregada Carol, que agia mais como se fosse sua madrasta. O pior, é que ela lia vários livros no afã de escapar da realidade e ter sonhos estranhos como os de Bizuca, como os daquele jovem que sempre aparecia rente a sua janela, um jovem pelo qual ela se dizia apaixonada, só que, jamais conseguiu tocá-lo, como acontecia entre Mirella e Bizuca Cortez. Neste ponto estavam empatados. Eram apenas sonhos.
 
Linda Vasques, sua vizinha, era a mais nova garota na cidade. Voltou recentemente a Pomares depois de cursar Faculdade de Enfermagem na Capital. Agora ela estava morando com seu tio Cordão apelido dado em razão de sua facilidade em “dar nó até em goteiras” nos comerciantes locais. Ele é um recluso, de poucas amizades e sai pouco às ruas, e agora sua bela sobrinha é assunto na cidade. Um alvoroço danado. A rapaziada não se contém. Acontece que ela também era garota dos sonhos de Bizuca e numa certa noite quente de verão vê as duas cruzarem os recantos verdes e repentinamente, se atracarem. Saíram rolando pelo terreno poento e Bizuca, desesperado, apressou os passos passando por uma trilha que parecia sem fim, e como por encanto, perto de um casebre, viu os corpos de Mirella e Linda desaparecerem por detrás das aspirais de uma fumaça escura que saíam de um fogão a lenha. Atônito, com a respiração ofegante e suado acordou. Levantou da cama, olhou pelo quadriculado vão da janela e disse: Graça a Deus! É apenas um sonho!
 
O sentido de toda essa introdução é falar um pouco sobre a timidez e, como membro assumido dessa espécie humana, venho aqui, sem pestanejar, de peito aberto e no afã de revelar aos meus irmãos de infortúnio, como aprendi a burlar em alguns momentos essa perversa e rigorosa timidez. O tímido para existir precisa trapacear sua própria condição e ao navegar sobre o mar de suas incertezas poderá até se tornar um náufrago de si mesmo, não obstante saber que a parte mais emocionante de sua vida acontece no espaço da sua imaginação. Ali, nos recantos verdes onde ele depositava diariamente seus sonhos e daqueles que conseguem sonhar sonhos imaginários, os tímidos se tornam Reis, arrebatadores de corações. Foi andando nesse mundo onírico e utópico, passando por caminhos pincelados pela natureza, sem pedras, sem pó e espinhos é que me senti capaz de ir ao encontro de alguém que certo dia me fixou os olhos. Eu chegava cheio de ginga, fazia charme, versejava palavras sem nexo, decorava-as, pensava antes de falar e até ousava cantar, para, finalmente, conseguir sugar de seus lábios o néctar das flores e matar um desejo ancestral.

O Detento, A Ex e A Sacoleira.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

O dia amanheceu e Torquato fez o último risco na parede, sorriu sorrateiramente e contabilizou-os para no final, conformar o quantitativo dos dias e noites passados na cela junto com outros detentos menos afortunados. À noite recebera a notícia de que seria solto por bom comportamento e voltaria à liberdade. Detentos amontoados não o perturbavam, faziam algumas piadinhas, mas ninguém ousava dizer o seu apelido: Girafa. Era grande, forte e pescoçudo. Se dissessem era encrenca na certa!

Naquele mesmo momento, do outro lado da cidade, Michele colocou algumas mercadorias na sacola compradas nas lojas de um e noventa e nove da Rua 25 de março em São Paulo. Partiu rumo ao centro à busca de suas clientes gastadeiras. Aquela mercadoria parecia difícil agradar, mas precisava convencê-las sobre o produto nem que fosse obrigada a usar de suas artimanhas e contar mentiras mirabolantes. Seria bom também que entrosasse com a turma da repartição com o fito de recuperar a autoestima, no entanto naquele dia o “mar não estava prá peixe” e ainda lembrou que o namorado Torquato tinha sido preso há alguns meses, e me relação a isso, achava-se um pouco culpada e envergonhada pelo acontecido. Ele fora preso acusado de furtar mercadoria de uma sacoleira. Veja que coincidência!?

Torquato com o semblante extasiado colocou o giz azul sobre a cama e deixou como presente aos colegas de cela um conjunto de baralho, que os ajudaram há passar o tempo entre aquelas quatro paredes mofadas. Era um passatempo que naquele dia perdeu o sentido. Antes de sair prometeu visitá-los, trazer-lhes cigarros, entregar as cartas que mandariam aos familiares. E, sobretudo, pensava em si e na vida que deixara. Sua besteira em tentar enrolar uma sacoleira agora estava paga. Agora era rever a namorada sacoleira que talvez estivesse na esquina esperando. Iria conversar com ela, pedir desculpas, fazê-la feliz, e até casar.

Michele ao passar pela avenida encantou-se com um porta-jóias, caixinha de música estocada numa banca de camelô. A pequena boneca bailarina dançava sobre o espelho e ela se lembrava de tudo que já quisera ser. Sempre sonhara ser dançarina, mas logo teve que trabalhar exercendo funções pouco criativas, principalmente a de sacoleira. Agora o trabalho valia como ocupação e não pensaria em besteiras. E, afinal, havia coisas boas na vida: o seu namorado. Ele ia sair da prisão e tinha que estar lá. Aquela caixinha de música podia esperar.

Torquato retirou debaixo da cama a Bíblia, recortes de jornais e revistas pornôs, coisas que o faziam lembrar-se de momentos bons e difíceis e até do mundo profano lá fora. Os pôsteres de garotas seminuas ficaram para os colegas. Com a Bíblia debaixo do braço, presente que lhe dera um padre franciscano, releu algumas frases sem nexo que escrevera na parede, onde tentava se iludir dizendo que lá fora não existe tanta liberdade, enquanto que ali, embora entre grades... Ah! Deixa isto prá lá. Com os olhos voltados para o pequeno gradil da janela onde quase não passavam raios de sol, fez o sinal da cruz, pegou seus pertences e suspirou, achando incrível que um dia pudesse vir a sentir saudades daquele lugar horrível.

À porta de uma loja Michele abriu um embrulho e não acreditou. Alguém que não se identificou mandou-lhe entregar um pacote e dentro dele uma caixinha de música. Desconfiada, abriu o embrulho e qual foi a sua surpresa: A caixa era usada e estava toda estragada. E o som nem se fala, arranhava, e a boneca sequer mexia. Que brincadeira de mau gosto! Quem será este imbecil? Questionou injuriada. Perdeu o controle e quebrou o bagulho na cabeça da primeira pessoa que começou a rir. O Azar é que ela era a ex de Torquato. – Foi você imbecil? Perguntou. Ela continuou rindo sarcasticamente, sem dar a menor bola. Parecia sentir-se vingada. E lá se foi àquela manhã primaveril. Cacos de bonecas e outros brinquedos voaram para todos os lados, gritos, empurrões, e elas se atracaram arrancando fios de cabelos que ficaram grudados nas mãos. Chegam os seguranças e todos foram parar na sala da Gerência.

Naquele instante Torquato saía da Delegacia. O sol que mal conseguia passar pelo quadriculado do gradil, lá fora lhe feria os olhos. Parou por instantes para acostumar. Nem sabia bem que rumo tomar. Talvez descer a pé até a próxima esquina, chamar um táxi usando os seus últimos e míseros reais ou seguir à frente em busca de seu destino. Frente à Delegacia parou uma viatura e dela saíram duas mulheres, algemadas. Uma com a cabeça enfaixada onde recebera doze pontos como prêmio, Outra, com o corpinho de Tessália, cabisbaixa, desceu olhando triste para o chão. Era Michele que ao passar por Torquato ergueu os olhos cheios de lágrimas. Ante ao aparato policial e xingamentos de baixo calão vindos de Etelvina, a ex, os dois sequer tiveram tempo de se abraçar e ou mesmo dizer: Oi, meu amor! Torquato meio assustado apertou a Bíblia junto ao peito, pediu perdão a Deus por aquela brincadeira que fizera a Michele, apressou os passos e sem olhar para trás seguiu rumo incerto.

Por quem os sinos dobrarão.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Deus ao criar o homem colocou em sua mente uma multiplicidade de sensações e emoções capazes de despertar sentimentos mais variados – desde o prazer proporcionado pela contemplação da beleza, da harmonia e equilíbrio naturais, até do terror e impotência gerados por pessoas passando fome, doentes e sem condições de plantar a sua própria sobrevivência. Por outro lado, veem-se meninos e meninas cheirando cola para enganar a fome, crianças e mulheres que se prostituem para sobreviverem, chacinas, roubos, corrupção, abusos do poder econômico que oprimem, catástrofes e fenômenos naturais que ocorrrem no mundo, onde tudo parece irreal, mas é pura realidade e se alastram como se fosse uma coisa natural característica da própria espécie humana, que a tudo vê e assiste complacente através de jornais e imagens geradas pela TV.

Quando intitulei este artigo como “Por quem os sinos dobrarão”, título de um filme antigo, o fiz com  o intuito de homenagear o Padre Luiz Augusto e reportar o seu sermão proferido no último domingo na Paróquia Santa Terezinha do Menino Jesus. Ele, incisivamente, pediu ajuda aos profissionais médicos e odontólogos que colaborássem na Clínica Atos e que resgatássemos da memória do tempo os bons fluídos, o amor ao próximo, a prática da solidariedade, a volta das riquezas e criatividades cristãs, que criteriosas, podem fecundar novas reflexões e ajudar a delinear e modelar novos conceitos de vida em face do processo atual, de forma que, cada pessoa se torne responsável pela sua própria história, pela sua própria libertação, transformando a sua realidade de forma que se efetive a justa liberdade e amor, ainda que de maneira rudimentar.
 
Naquele domingo, padre Luiz ao ver a multidão diante do altar e rincão inacabado, talvez sentindo a não presença de Deus em muitos corações e a falta efetiva de colaboração dos fiéis, passou no telão as obras que a comunidade Atos vem realizando em prol dos mais necessitados: mostrou pessoas famintas, enfermas, idosas e viciados em drogas, abandonadas, sem rumo, perdidas na escuridão de seu próprio ser. Preocupou-se sobremaneira com a situação real de alguns enfermos, como o do Carlos, mas não se deixou abalar pelo desânimo e insistiu junto à multidão que se praticasse a solidariedade, realçando-a como único valor e extremamente capaz de forjar um mundo mais justo, humano e fraterno.
 
Após ouvir as palavras do Padre Luiz, com o pensamento absorto, me vi caminhando pelas ruas da cidade, sem chutar pedras ou bisbilhotar as belezas circundantes. Olhava o vaivém dos veículos e a falta de respeito à leis de trânsito e ao próprio ser humano. Cada carro que ultrapassava o meu, sentia uma dor no coração ao imaginar que a vida de cada uma daquelas criaturas sequer tinha tempo de pensar que existe vida além vida e que poderia ter que prestar contas do que faz neste mundo de expiação e provas. Sequer tinham tempo de observar os pedintes amontoadas nas calçadas e uma criança esquelética sugando o seio da mulher que parecia doente. Um quadro que jamais apagarei da memória. Pouco mais à frente, um vento quente soprou manso e logo deparei com alguns jovens descontraídos que usavam colares, brincos, pircing, cabelos pintados em cores variadas, dando-se a impressão de estarmos em outro planeta. Fumavam e soltavam baforadas de fumaça que cheirava a “baseados” e nos refrigerantes, misturavam diminutas pedras de crack no afã de contemplar melhor a vida e de se “chegar às nuvens”, talvez numa nave criada pelas suas imaginações, sem destino e desvalida.
 

Ao quebrar os laços familiares, deixar de ajudar aos infortunados, aos doentes e àqueles que passam fome, o homem quebra também o elo da cadeia que o liga a harmonia, ao amor, a fraternidade, a fé e equilíbrio de forças assentes nas Escrituras, motivos relevantes que se não exercitados tornam implacáveis e difíceis a mantença da sobrevivência humana, e na forma em que está, banalizada, indiferente e que nos leva  passividade, não pode continuar. Ao final, deverão estar fundamantadas precisamente no amor, na caridade, não ficar à deriva, sem referência, para no final, saber por quem o sinos dobram e dobrarão e não perderem a visão familiar tão sonhada por Josué (24:15): “Eu e minha casa serviremos ao Senhor”.
 
Hoje, o homem não mais cora de vergonha e muitas vezes nem vê  motivos para isso. Talvez a vergonha que não se aflora mais em seu rosto é que o faz fazer tantas declarações de intenções, tantos compromissos político-sociais, tantas promessas de ajudar ao próximo, ajudar aos doentes, ao menos favorecidos; muitas vezes não realiza alegando falta de tempo ou faz-se de esquecido. Ao analisar as palavras do Padre Luiz no último domingo confesso que corei e sei que muitos coraram e usaram a carapuça. Eu, principalmente, me senti em débito com a minha comunidade. Cheguei a conclusão também de que temos a oportunidade fazer alguma coisa boa em prol de nosso Planeta e se não o fizermos será por mero capricho. Podemos transformá-los num paraíso se agirmos com correção, termos amor ao próximo e sermos solidários um ao outro, ou num inferno, se sucubirmos sob o peso do pecado e da falta de amor ao próximo A resposta a esse desafio está presa nos elos da imensa cadeia da vida, que se quebrados, deixarão todos em cárcere inseguro, e para sairem ilesos, difíceis serão as decisões que cada um terá de tomar. E é diante dos fatos narrados que cheguei a conclusão de que os sinos dobram e dobrarão a todos aqueles que sempre ajudaram a segurar o cajado espinhoso da luta em prol da vida.

 
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