Vai graxa doutor?

segunda-feira, 14 de março de 2016

Tem pessoas que quando acordam para ir ao trabalho precisam de tempo para recuperar o prazer de se sentirem vivas. Antes de levantar espreguiçam-se na cama estalando os ossos impregnados na carne e em nervos adormecidos, deixando ao relógio a tarefa de eliminar os resíduos de mau humor ocorridos no dia anterior. Todo o corpo está em dissonância, até a respiração fica ofegante precisando resgatar mentalmente alguma situação agradável para que o ato de levantar não se transforme numa tortura. Algumas vezes sinto isso, principalmente quando me sinto massacrado pela volúpia trazida pelo tempo quente e seco. Nestes dias de verão, ao abrir a janela e olhar o céu azul, não consegui receber lufada de perfume antes trazido pelo vento, e ao aspirá-lo senti foi o cheiro de fumaça oriunda dos veículos, chaminés e de capim queimado vindo dos lotes baldios. Tudo isso dificulta transformar o meu humor azedo num sorriso e ainda deixa-me em desconforto e sem vontade de experimentar o gosto de mais um solstício de verão.

Certo dia, nem sei o porquê lembrei-me quando era engraxate. Vi-me andando pelas ruas poeirentas de Goiânia carregando um caixa de engraxar sapatos sobre os ombros, sorrindo para o mundo, enquanto o vento acariciava meu rosto me deixando pra lá de feliz. Lembranças que me trouxe disposição, motivos para acolher o melhor e treinar meus olhos para as delicadezas que o mundo me oferecia. Olhei no espelho e fiz um exame diário de meu semblante, na tentativa de encontrar cicatrizes, pés de galinhas e olheiras que muitas vezes me impedia de ficar bem com a vida. De um constante observar, este exercício facial resultava na descoberta de falhas de comportamento, mas que podiam ser evitadas desde que reagisse com lucidez. Essa reação diária de lucidez eu sei que é fruto das meditações que faço para escrever minhas crônicas, assim como, de não reagir à violência com violência, seja ela de ordem física ou psíquica. Sinto-me mal toda vez que entro em conflito com alguém. Tenho horror a qualquer embate onde a agressividade seja a nota que conduz a discussão.

Ninguém está imune à inveja, mas não jogo cartas com ela. Não me interessa desafiá-la. Apenas a encaro, como a um inimigo mais fraco do que eu. Já vi pessoas próximas se sucumbirem, mesmo sendo ricas interiormente, porque acreditavam que outras não mereciam o que tinham. Estas ficavam paralisadas diante de um falso fulgor alheio e nem percebiam que estavam sentadas sobre uma mina de ouro. Invejar é uma maneira de vestir a vaidade de modéstia.  Por isso, acordar neste verão e sentir o gosto das manhãs chuvosas sempre foi para mim salutar; saborear o mamão, beber leite com café e mastigar um amanteigado pãozinho francês com gergelim também faz parte do meu cardápio; saber olhar o mundo com humildade e reverenciá-lo; entender que um dia a mais é um dia a menos na contagem de tempo de nossa existência; entender que devemos aproveitar cada minuto como uma criança que se delicia com uma  balinha de hortelã em sua boca sem se importar com o passar do tempo. Precisamos voltar a ser essa criança, nascendo quantas vezes for preciso e espreguiçar entre os lençóis embebidos por carinhos de nossa mãe.

Mas aquele dia parecia que seria diferente. Quando sai do elevador e pus os pés sobre a calçada senti um bafejo quente próprio de um planeta ameaçado. Nas calçadas pessoas estranhas cheias de dogmas se cruzavam, outras, paralisadas, como se fossem espectros humanos, com os olhos voltados rumo ao céu. Com o pensamento alhures tinha que continuar, seguir o meu trajeto, com expectativas, é claro, de encontrar um mundo melhor e mais humano ou, ser surpreendido por alguma coisa real ou surreal, um fenômeno qualquer, talvez vindo de outra dimensão ou do infinito universo de forma que pudesse servir de alerta aos seres humanos.

De soslaio, já na calçada, em pleno meio dia, também olhei para o céu coberto de nuvens enfumaçadas e foi difícil entender o segredo do universo. O sol, importunado pela imensidão de nuvens em suspensão na atmosfera, formava ao seu redor uma auréola multicolorida e parecia dizer: estou de olho nessa terra de desmandos! Não sei se foi num momento de puro cansaço, parei e comecei ver a vida passar, ou vidas passarem. Fiquei pasmo esperando o “acontecer naturalmente”, mas como demorou, cansei. Esperei os minutos passarem e nem contabilizei quantos, quem sabe se com eles não passariam também as dores, ansiedades, tristezas e mágoas. Em um desses momentos que só acontece comigo, me senti criança, pés descalços, andando pela calçada sem rumo e nada por acontecer, talvez perdido, todavia, quis o destino que um garoto com semblante triste, debruçado sobre sua caixa de engraxar e sem pedir licença, chamou-me à atenção e com uma cutucada nos ombros perguntou: Vai graxa doutor? E não é que o danado do engraxate me fez voltar à realidade!


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