Morro do Alemão sob o olhar de um poeta.

quarta-feira, 1 de março de 2017


Esta história foi contada pelo amigo Duda Morais, poeta que morava no Morro do Alemão. Dizia ele que certo dia quando subia lentamente a ladeira do morro, avistou logo à direita um poeta que se encontrava debruçado sobre a janela. Deu mais alguns passos e notou que do outro lado da rua, à esquerda, tinha outro poeta. Continuou subindo e bem à frente numa pequena sacada, com o olhar voltado para a imensidão do universo, viu mais um e mais além, numa mesa de bar já perto do topo do Morro, mais outro. À medida que ia passando por eles Duda observava que os mesmos estavam com semblantes preocupados e vozes emudecidas e por razões óbvias, pois ouviam ecoar em todos os cantos da favela rajadas de balas que riscavam a noite que mais parecia uma pirotecnia. Alguém estava com um revólver na mão, mas Duda notou que não era o poeta que estava debruçado na janela. A sua única arma era a caneta e na sua intimidade, usava apenas um calção surrado e estava com o tronco nu exposto aos trópicos. Também não era o poeta da direita, pois Duda mesmo com os olhos embaçados não o viu manejar arma alguma. Observou também que estava desarmado o poeta que se postava na sacada, assim como, o da mesa de bar. Na realidade eles tinham que ficar quietos para não serem alvejados pelos traficantes ou policiais que adentravam na favela atirando a esmo. Diante daquele calor agonizante ouvia outros zumbidos, mas os de pessoas fazendo sexo, bebendo cervejas e dando risadinhas sarcásticas escondidos com suas amadas nos becos escuros.

Duda dizia que não enxergava tão bem mesmo tendo olhos perfeitamente sãos, mas usava óculos de grau para enxergar à distância, todavia naquele entardecer ele tinha esquecido sobre a escrivaninha. Se os olhos só veem aquilo que estão preparados para ver, então os olhos do poeta estavam, pois a situação em tela, sob o olhar dele, todo aquele aparato policial para enfrentar o tráfico era real, comum na região, coisas que aconteciam cotidianamente, tão normais que mais pareciam cenas de um filme reprisado. Sabia o amigo poeta que ao caminhar por aquelas ruas estreitas começaria a viver um dilema conflituoso… Felizmente, seus ouvidos eram aguçados e escutavam passos mesmo distantes. Dizia que tinha uma boa audição. Mas seus olhos embaçados e na falta dos óculos não podiam ver com nitidez o que os ouvidos ouviam… Escutar suas aflições, seus dilemas, escutar o seu coração bater forte, e escutar o seu próprio caminhar era o que lhe restava. Mas não podia ver nada daquilo, nem mesmo seus passos. O engraçado é que não conseguia ver nem a si mesmo. Pensava: Será que eu estou invisível!

Era tanta a sensibilidade que sentia as mãos do poeta da janela tocar em alguém; ouvia estalos de beijos; sentia um gemido de mulher; ouvia o vento roçar seus cabelos, mas se havia realmente uma mulher misteriosa ao lado daquele poeta Duda até seria capaz de sentir, mas, infelizmente, não a viu, apenas escutava murmúrios e estalos. Seus olhos de poeta estavam embaçados de tal forma que ele não podia ver o mundo com sentimento de destruição. Contabilizou segundo e chegou à conclusão de que tinha captado cinco sentidos: inexatos, confusos, impróprios, relevantes, surpresos… que lhe levaram a sentir; sentir apenas o que ele queria e podia sentir cujos sentimentos sabiam serem somente seus porque era um ser humano, igual a todos nós.

O poeta que debruçava na janela após beijar a donzela, puxou-a para dentro do barraco e depois se despediu. Deu alguns passos, atravessou rapidamente a rua e subiu até a sacada. Os dois poetas se cumprimentaram. O poeta que estava debruçado na janela era esquelético, mas elegante, e o outro, mais troncudo. Um vestia calção e camiseta surrada, o outro, calças jeans, mas com o tronco nu exposto aos trópicos. De onde estava Duda quase não conseguia ver. Os outros poetas ouvindo tiros subiram apressadamente a escadaria e juntaram-se aos dois que se encontravam na sacada se ajeitando como podiam para fugirem das balas perdidas. Houve confronto. Os traficantes ficaram frente a frente com policia que subia com passos lentos e cadenciados, mas se esgueirando nas paredes das casas e lojas comerciais. Mesmo com os olhos embaçados Duda via os poetas na sacada e uma cumplicidade entre eles, como se fossem executivos se reunindo em torno de uma mesa de negócios. A cada tiro, ao invés de retrucarem ou gritarem, os poetas pegavam um caderno e escreviam poesias... E naquela noite foram muitas. Em certo momento um deles parecia brincar com uma arma, fazendo girar no dedo como naqueles filmes de caubói que Duda assistiu, eu assisti e sei que todos assistiram nos tempos idos, mas não era arma, apenas uma caneta. Duda esfregava seus olhos em círculos como faz o relojoeiro quando dá corda ao tempo. Rodava. Parava. Rodava como nos filmes. E, de novo, um dos poetas, com a flanela nas mãos, limpava uma coisa qualquer, como a um experiente zelador que lava e limpa uma vidraça. Duda postou-se sobre o vão da janela de seu barraco que ficava empilhado sobre outro, viu aqueles quatro vultos e á pouco metros deles um pelotão de policiais. Com os ouvidos aguçados, deu um passo para trás e fechou a janela. Lá de cima os poetas não podiam ver o que Duda de sua janela repetidamente via. A rigor, nem olhavam ao redor da favela, e o que eles teriam que enxergar, não enxergou e muito menos gritos carnavalescos que ecoavam pelas ruas e avenidas.

Duda enquanto estava postado na janela via outros personagens em cena. Uns subindo e outros descendo vagarosamente pelas estreitas ruas. Ele viu um ou outro favelado, alguns ainda usando fantasias carnavalescas. Um parava, mas olhava o outro que estava armado, andando como se nada tivesse acontecendo. É coisa comum na favela. Nada de espanto. Nada de constrangimento, dizia Duda. Mas ele ouvia e via algo mais que eles. Via o vulto de uma criança voltando talvez retornando de um arrastão. Sentia que ela estava sorridente mesmo com a escuridão lhe cobrindo o rosto. Ouvia vozes e passos que subia calmamente os degraus, e depois o vulto de uma pessoa parar diante de três homens de calção e dorso nu. Um dizia qualquer coisa ao que brincava com uma arma como quem podia a bênção ao pai ou saudava uma linda recepcionista. Olhava a arma como quem via nela um fruto amadurecendo. Como quem olhava um instrumento de trabalho de adulto. Com o mesmo pasmo do filho olhando os objetos usados pelo pai marceneiro.

Olhando todas aquelas cenas Duda compreendeu que todos somos prisioneiros de nós mesmos. Na parte alta do morro ele contemplava de um ângulo homens seminus, portando armas pesadas e de grosso calibre, e na sacada, num outro ângulo, igualmente agudo, os seus amigos poetas, intranquilos, amedrontados. Duda e os quatro poetas se sentiam prisioneiros, como se estivessem em cárceres privados, imobilizados diante daquele visual antesocial, real, pervertido. A ansiedade não se alojava apenas no ângulo de seus olhos embaçados, mas de meus amigos também. Observava um rapaz de calção e sua arma, como quem via qualquer força da natureza. Amanhã durante o dia ou à noite, ele sairá com mesma arma, como se fosse uma coisa normal. Talvez encontre na rua ou numa travessia escura uma pessoa incauta e lhe arrebente a cabeça com a bala de sua fúria. Ele não dará tempo ao infeliz e atirará sem pestanejar ou apenas para ouvir o gemido do desafeto. Se essa situação vir acontecer com comigo, com os poetas ou com qualquer outra pessoa inocente, não estarão aqui para contar o acontecido, todavia jamais terão um olhar indiferente dos poetas.


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