O Andarilho, o Cajado e a Bengala

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Ao sentar diante do computador nem me preocupei saber que dia era. Só percebi que era noite quando o clarão da lua passou efêmero rente à janela sem fazer nenhum alarde. Não ouvia sons de veículos, apenas os emitidos pelas pequeninas gotas de chuvas, extemporâneas, que se debatiam no vidro da janela e logo eram levadas pelo vento. Aquietei-me por instantes. De repente, lembrei-me de um idoso na fila de um Banco com o olhar perdido na escuridão do seu próprio ser. Com o rosto carcomido pelas intempéries do tempo esperava ansioso sentado numa cadeira e com o olhar voltado para uma TV na esperança de ver anunciado o número de sua senha. Uma fila enorme com um atendente apenas. Era demais para ele, assim como era enganoso aquele símbolo de um idoso apoiando-se numa bengala. Uma pessoa de outra fila depois de ser atendida passou pelo idoso e com certo desdém disse: Véi! Esta sua fila num anda e é pura embromação aquele aviso.

Retornando ao mundo virtual, cliquei sobre o Word para escrever mais um artigo, e noutro repente, senti a mão do destino tocar meus ombros fazendo-me lembrar de um andarilho, de corpo curvado e maltrapilho, pegando um galho caído à beira de um caminho. Aquele estranho passava e não deixava de me observar. Eu não era um menino tosco, era esperto e logo percebi que ele iria construir um cajado com aquele galho de angico. Só ele notou que aquele pedaço de madeira no meio do matagal era de lei. Era também perceptível o seu olhar melancólico, olhando para o alto, para as copas das árvores e depois, à sua volta, parecendo conhecer bem aquela estrada.  Observei que ele tinha a sensibilidade de ouvir os pássaros e o barulho do vento passando entre folhagens; de respirar fundo e perceber os diferentes aromas que as flores e frutos produziam. Cheguei perto, dei-lhe água e comida, ele sorriu, agradeceu e seguiu o seu caminho. Certo dia, quando ele retornava, desta vez manuseando compassadamente um cajado, tocando-o firme sobre o chão batido, eu continuava lá, no moirão da porteira, com o olhar voltado para o horizonte poente, mas, certamente, observando-o, assim como, às árvores, as folhagens, as flores que circundavam aquele recanto. Quando ele passava por aquela estrada percebi que o tocar do cajado no chão adquiria um ritmo que dava motivação à sua caminhada. A cada passo batia o cajado no solo levantando poeiras ao vento. O ritmo era uma verdadeira música que tomava conta de meu inconsciente e tornava-se parte de mim. Mas, naquele dia parou diante de mim e me entregou um belo cajado gravado com o Salmo 23: O Senhor é o meu Pastor, nada me faltará..., e novamente seguiu viajem.

Dias se passaram e não mais o vi, assim como, sentia falta do ruído do cajado. E foi em razão da mensagem e desse estranho sentimento que resolvi escrever sobre este tema, que começa assim...

Dias atrás vi o velho Enauro, empresário aposentado, sempre com a costumeira mansidão, sair para seu passeio matinal e junto à porta, pegar o chapéu de palha e a bengala. Coincidentemente, no mesmo momento, do outro lado da rua, saiu Tiziu, o inquieto andarilho, com seu cajado que moldara com esmero. Tempos idos, a bengala era um complemento indispensável aos homens de negócios, fazendeiros ou coronéis. Ela tinha o cabo decorado em prata e nele era gravada as iniciais do proprietário. A bengala tem a sua história. Entretanto, o cajado, desenhado em cavernas, descrito na literatura bíblica, também tem sua história, pois sempre esteve ao lado do homem desde os primórdios da civilização, seja como instrumento de defesa e proteção ou servindo de apoio nas caminhadas intermináveis.  O cajado que o velho Tiziu usava, com o passar dos tempos evoluiu para a bengala, mas, para ele, nada o substituía. Era o complemento do seu braço, o suporte do seu corpo ou de sua própria vida.

O cajado não tinha o cabo dourado como a bengala do nobre Enauro, mas Tiziu o manuseava com maestria. Com a mesma classe que o “malandro” tira o chapéu, ou o detetive pendura o casaco. Na casa dele o cajado tem um lugar certo para repousar. Todos sabiam que os antepassados usavam a bengala como um adereço masculino, tornando-a símbolo de status social, e a partir do século 20, a bengala ganha um caráter mais funcional no auxílio ao cego, apoio ao soldado ferido e braço amigo ao velho trôpego e frágil. Entre os notáveis temos muita gente famosa e entre essas, o legendário Charlie Chaplin e os cavalheiros ingleses, que iam ao teatro usando fraque, cartola e bengala. Já o cajado, não possuiu o mesmo status social, mas amparou desde os primórdios da civilização muita gente humilde em suas caminhadas, ajudou pastorear ovelhas, ajudou aos cristãos percorrerem lugares distantes e inóspitos para pregar o evangelho. Até Jesus teve o seu Cajado e fez dele um símbolo da resistência e da força cristã.

Hoje, caminhando pela estrada da vida tento levar o meu “cajado”, para enfrentar algumas subidas e descidas que ela nos impõe e que só o cajado pode aliviar. Peregrinei a maior parte de seu caminho sozinho, e ainda menino, carreguei nos ombros uma caixa de engraxar sapatos, fui jornaleiro, comerciário, bancário, executivo, servidor público, escritor, ambientalista e hoje, depois de uma estafante Universidade, até me chamam de doutor. Durante essa minha caminhada nada foi capaz de tomar o meu cajado que sempre me firmou no chão. Sim, o cajado talvez tenha sido a minha cruz e eu já fazia parte dele e ele de mim. Ele era a continuação de meus braços, parte integrante de meu corpo e nos tornamos um só.

Talvez seja esta é a razão para o grande apego que os peregrinos ou andarilhos têm ao seu cajado.

Mas, os tempos mudaram. A bengala está perdendo seu encanto ao complementar o vestuário masculino e hoje passou a ser o símbolo do idoso. Dessa forma é agora vista com desdém, só o velho ou o doente faz uso dela. Enauro, infelizmente, foi para outra dimensão e deixou a bengala repousando no mesmo lugar, mas sei que ela continuará no seu braço direito quando cruzar as ruas infinitas do paraíso ou dos caminhos que Deus lhe indicar. Juntos, cajados e bengala ampararam os velhos Enauro e Tiziu por décadas, deixando-lhes conscientes da dependência que tinham dessas peças, hoje, algumas  apenas ornamentais. Elas os conduziram com a elegância dos tempos que não voltam mais… Ao olhar o símbolo do idoso segurando uma bengala ou cajado, postado nos guichês de atendimento por determinação legal, devemos fazer com o maior respeito e tentar retratar com esse olhar o passado de glória de cada um deles, suas lutas insanas pela sobrevivência e a forma intrépida que fizeram para percorrer o caminho de suas existências, usando os cajados e bengalas sem jamais terem medo da derrota ou pressa de chegar à vitória.

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