O Vacilão

terça-feira, 13 de novembro de 2012


Ildo Marcel sabia escrever e bem. Algumas vezes lia com curiosidade parte de jornais que achava jogados nas calçadas e fazia algumas notações no seu caderno comentando sobre as notícias e cenas horripilantes do dia-a-dia, retratadas em letras e fotos garrafais. No seu pequeno caderno tinha a sensibilidade de descrever, mesmo nas horas mortas, as sombras que se movia nas esquinas, sobre o cheiro das flores que vinham dos jardins e o gosto dos frutos que retirava dos quintais. Com a caneta presa na orelha, caminhava olhando para os lados, arqueando as sobrancelhas grossas, enquanto os cabelos anelados nem se mexiam com o vento. Há dias não os lavavam. Em cada vulto, procurava retratar a sua mãe, a quem não via há mais de cinco anos. Cabisbaixo e com a saudade estampada no rosto, deu uma baforada, escondeu o cachimbo no tronco de uma árvore e seguiu em direção ao Condomínio Residencial que ficava a pouco mais de dois quilômetros do centro cidade, forçando a perna esquerda prejudicada por uma paralisia infantil. Sabia que a sua mãe e irmã ainda moravam lá, mesmo diante das dificuldades financeiras.

Cansado de tantas andanças, Ildo tomou uma decisão. Resolveu voltar para casa, pedir perdão e viver ao lado da mãe. O suor escorria pelo rosto enquanto espremia as mãos, deixando à mostra as unhas sujas de terra e manchas escuras sobre os dedos deixadas pela fumaça da maconha que saiam do seu adaptado cachimbo. Perambulando pelas ruas às vezes conseguia um cantinho para dormir mais tranquilo, sem a perturbação de outros meninos de rua que muitas vezes queriam esculachá-lo, mas, esperto, sempre conseguia se safar.

Pensava muito na sua mãe e queria estar com ela. Sabia que ao deixá-la para procurar a tão sonhada liberdade, fora um vacilo seu. Morou nas ruas, drogou-se.  Sentiu raiva e saudade, e às vezes, dominado pelo vício, chorava. Começou a sentir-se só e ele tinha consciência da burrada que dera. Tinha um lar perfeito, uma mãe carinhosa, mas os “amigos” o drogaram e convenceram-no a ter a tão propalada liberdade. No caminho de retorno, furtou de um quintal uma camisa e trocou com a sua já maltrapilha que também furtara há meses. Com a calça caindo sobre a bunda e tênis surrado, continuou andando pelas ruas e avenidas enquanto o povo o olhava com certo desdém. Sentia-se um “João Ninguém” e até o sol que queimava o seu rosto imberbe parecia indiferente. 

A maior parte do tempo ficava usando drogas para esquecer a vida, roubava para manter o próprio vício, apanhou e estava sempre sendo observado pelos traficantes e os olhos sisudos da lei. Foi preso por uso de drogas e depois que saiu do reformatório logo voltou para a rua. Dizia alto e em bom som que não era passarinho para ficar preso em gaiola. Às vezes, ficava vendo garotas e garotos indo à escola, achava bonito e até pensava que se tivesse ido talvez a sua vida fosse diferente e hoje não estaria usando drogas, roubando e dormindo em becos sujos, entregue a própria sorte e de certa forma, esperando a cortina do tempo se fechar sem antes tomar uma atitude de mudança. Ainda era em tempo, pois tinha apenas dezesseis anos e ademais, era herdeiro de um lar que outrora vivia em crise, hoje não.

Ao entrar na casa viu sobre a estante a fisionomia de uma infância feliz imortalizada numa fotografia: Era ele de cabelos castanhos encaracolados, com oito anos de idade, fazendo pose em cima da porteira de uma fazenda que sequer lembrava qual. O sorriso eternizado no único retrato de sua infância conta um pouco de sua história. A foto foi tirada dias antes da separação dos pais, uma perda não superada pelo menino. Com a separação começaram as fugas que se tornaram rotina. Era jovem demais para entender. A sua mãe tentou explicar o motivo da separação. O marido era alcoólatra, agressivo, lhe batia e perdera o emprego em razão do alcoolismo. Era visível que as marcas da violência incomodavam sua mãe toda vez que ela se olhava no espelho. 

Ildo, mesmo arredio, recebeu o abraço carinhoso da mãe. Depois subiu aos aposentos e tomou banho, deitou-se sobre o lençol branco estendido sobre a cama. Depois, diante do sorriso angelical de sua mãe, saboreou o que gostava: arroz carreteiro, feijão preto e um suculento frango a molho pardo com pequi. Ainda arredio subiu novamente ao quarto, olhou pela janela e viu o dia ser engolido pela noite e cansado, deitou novamente sobre a cama. Dormiu. Quando despertou, começou a desenhar tudo o que vira durante o lapso de tempo em que se tornara um menino de rua. Usando formas coloridas, reproduzia com fidelidade os detalhes de cada peça, as copas das árvores floridas e suas sombras, sejam formadas pela luminosidade solar ou pela lua; reproduzia os meninos e meninas de rua deitados sobre as calçadas, os canteiros das praças e jardins, as aves que se alvoroçavam nos galhos, as quais, alegres e cantantes, pareciam querer motivá-lo a lutar pela vida, mas, tudo de certo modo parecia ser em vão. Deixou os desenhos de lado e mirou a mochila que estava sobre a escrivaninha. Abriu-a. Manuseou os velhos cadernos e junto deles colocou aquele que carregara durante aqueles anos. As aulas começariam na segunda-feira, Ildo ficou pensativo por instantes e aí, repentinamente, sentindo um desejo incontrolável que lhe produzia suor, ansiedade e que corroíam suas entranhas, pegou a mochila, olhou pela janela e antes do sol se pôr, surrupiou alguns reais na bolsa de sua mãe e fugiu. Da nada adiantou o carinho dela. Vacilou mais uma vez. Lá fora, algo mais poderoso o esperava, não resistiu à falta do famigerado crack. Meses depois a televisão noticiava sobre um corpo franzino que jazia num beco escuro com uma perfuração no peito, apenas uma bala tirou-lhe a vida. Era Ildo que vacilou mais uma vez não pagando a um traficante.


0 comentários:

Postar um comentário

 
Vanderlan Domingos © 2012 | Designed by Bubble Shooter, in collaboration with Reseller Hosting , Forum Jual Beli and Business Solutions