Eram apenas gestos e nada mais...

domingo, 4 de outubro de 2015


Preguiçosamente apertei lâmpada do abajur que perscrutava as sombras dos gestos refletidos nas paredes, parecendo seres vivos saltitantes extraídos de filmes de animação, vivos como nunca, imagens que jamais refletira. O velho abajur geralmente iluminava debilmente o quarto fazendo a luz branda tornar todos os meus gestos romanticamente surreais. Todavia, de repente, a luz que a muito não acendia tão intensamente, surpreendeu-me com seu poder de claridade. Alguém deve ter substituído a velha lâmpada por uma de 60 volts. Os movimentos sombreados na parede começaram a acontecer como a um desenho animado filmado em câmera lenta e em formato de preto e branco. A imagem refletida na parede era febril e frenética, mas também estática, bastava ficar quieto. Os gestos de minhas idas e vindas retesavam-se na branca parede do quarto e lutavam para se libertar de um corpo estranho que se movia de um lado para outro e insistia em não liberar meus gestos ora embutidos naquela cena surreal, mas, fortificados com a presença da forte luz, escaparam do peso daquelas sombras e rejuvenesceu o meu coração que de tanto lutar já gesticulava incólume.

A luz brilhou mais forte e pensei que nunca acabaria. Olhei para um canto vi uma cama e berço vazios e sobre a cama e travesseiro, faltava alguém. Com os olhos ainda travados pelo sono, cabelos desalinhados, mãos calejadas em face da lida rotineira fiquei pasmo e uma saudade abateu-me sobre o peito. Faltava realmente alguém naquele espaço, alguém que me ajudou a curar as minhas dores e feridas; alguém que não reclamava de nada, nem das dores desconfortantes dos pés, dos joelhos, das pernas e braços, esfolados por quedas e estripulias que a própria vida gerou; alguém que naquela noite inusitada não pode ver o meu rosto ser iluminado pela nova e potente lâmpada do abajur. Alguém que se estivesse ali certeza teria de que a luz mostraria a face e o dom de sempre me envolver com a calmaria que a vida tantas vezes insistiu em roubar-me.

Gestos surreais, cenas realmente inusitadas, refletidas na parede, que naquela noite somente eu tive o privilégio de assistir: um corpo de mulher em movimento coberto por um lençol cheio de contrastes e cores, cabelos loiros, lisos, amparados por um travesseiro de espumas macias que, mesmo deleitando-se numa cama despida de macios lençóis, sobre ela afigurava a imagem de uma mulher guerreira e forte. Os gestos só podiam ser surreais mesmo, pois há dias não acendia aquele velho abajur e jamais pensava assistir cenas tão preciosas que minha mente jamais esquecerá. Mas, quanto á saudade é difícil imaginar mesmo quando se vê apenas gestos refletirem numa mísera parede. É uma coisa estranha que toma conta da gente, chega sem pedir licença e acontece quando menos imaginamos e aí vem saudade do seu cheiro, saudade de uma melodia que curtíamos que nos trazia boas recordações, saudade de uma simples palavra ou manifestação de amor; saudade daquelas imagens que foram se acoplando dia a dia na região recôndita de meu cérebro, mas, eis que a máquina do tempo surgiu e me envolveu, convidou-me a voltar a ser criança.

A mulher que se gesticulava nas sombras refletidas na parede pode ter costurado a vida de muitos entes queridos, usando a linha da verdade para que pudessem construir suas vidas com sobriedade. Mulher, esse alguém, que deixou a saudade invadir o meu peito e se transformou numa ponte de concreto e me fez retornar a mim mesmo; uma travessia moldurada de sabedoria, sem empecilhos, onde se vê bordada uma identidade muitas vezes esquecida, perdida na pressa que me levou ou que me deixa levar.

Hoje, ao olhar para os gestos e falar em saudade dela é dizer o óbvio, é devolução, é ato que restitui o que se parte; é luz que sinaliza o local de nosso porto seguro, é voz mansa no ouvido que nos acalma nas madrugadas de desespero e solidão.  Mas, naquela noite, ao acender a lâmpada do abajur e ver aquelas cenas refletidas na parede não me restou alternativa senão em finalizar este artigo em uma única frase: O poeta tem diante de si vários sentimentos: o real, o palpável, o prático, o surreal, o imaginário, visões fantasiosas, e quando escreve, muitas vezes objetiva levar ao leitor uma mensagem de amor, esperança, fé, e intencionalmente, deixa de dedilhar o teclado do computador e o substitui pela caneta-tinteiro injetando nela a ruborizada tinta de um coração ferido pelo tempo no afã de aferir a sensibilidade de cada um, mormente quando virem perscrutadas as sombras da pessoa amada refletidas na parede.


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