Vovô Torquato, o último dos caipiras.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Sempre ao final de tarde meu avô Torquato sentava sobre o vão da janela e sob o olhar terno de minha avó Francisca, pegava a viola e a ponteava com maestria, soltando a voz já rouca, mas gostosa de ouvir. Lembro-me de um pequeno texto onde ele dizia: “Agora eu toco, canto, em qualquer canto do meu recanto, longe ou perto, mas sempre com o olhar atento, no som do violão ou no sopro do vento”. Era um momento especial, inesquecível e ficava até boquiaberto. Quando ouvia o som de sua viola, aguçava meus ouvidos e depois, olhava rumo ao horizonte em busca de lembranças, mas lembrar-me de quê se eu era apenas um menino. Como a uma canoa invisível que desce rio abaixo, eu e meu avô Torquato sentávamos sobre um tronco de madeira e parecíamos remar contra a correnteza, pois algumas vezes a gente se sentia aperreado pelo acúmulo de tantas coisas deixadas prá trás até então por nós esquecidas. A cada lembrança procurava recebê-la igual a uma cachoeira caindo mansa sobre um poço fundo, todavia, a minha memória parecia querer trazer tudo de volta e de uma vez só, mas ao mesmo tempo ela expelia de meu corpo como se as lembranças fossem gotas de suor saídas da alma. Ah, que dom o velho Torquato tinha, sua cantoria e a viola mexiam tanto comigo que não tinha vergonha de ser chamado de o pequeno caipira. Quem nasceu na roça entende o que falo, então, quanta emoção, quanto sentimento, que acoplava na minha retina, que nada mais eram coisas de um menino sonhador. Quantos nós vieram à minha garganta, nem desatava, nem subia ou descia, numa mistura de tristeza e alegria que só a saudade pode criar. Dava até para sentir o cheiro da terra, o toque da textura do chão molhado sob meus pés descalços.

Mas a fazendinha do vovô Torquato praticamente não existe mais. Abandonada há tempos hoje nada mais é que um casarão perdido num terreno íngreme, mas simbolizando ali uma história de luta. Não se vê mais o rego d’água, nem a bica, nem o monjolo. Não tem mais porco no chiqueiro, nem pomares, nem galinhas no terreiro. Não existe mais o galo Barnabé, o nosso despertador matinal, cujo canto ecoava pelas ribanceiras afora e coincidentemente, seu canto era respondido, talvez, por outros Barnabés. Lá também não se vê mais pés de café e nem aquelas fileiras de pés de milho com pendo dando. Na realidade, quem cuida dela e a mantém limpa e em pé é o velho Agenor, ex-empregado de meu avô. Nas redondezas, hoje, se vê rasgando a terra as possantes colheitadeiras, plantadeiras e imensos caminhões cortando estradas levantando poeira do chão. E nos coldres onde o vovô prendia o revólver na cintura, hoje os agricultores não usam mais, nem bainhas para os canivetes, em seus lugares colocaram o Whatsapp e o rádio comunicador. E os bois e vacas na invernada são tão raros quantos lambaris nos rios que nadam com dificuldade no leito em face da poluição causada pelo próprio homem. No lugar da enxada, acabam com o mato usando veneno para não destruir plantas transgênicas. Quem viu e viveu a epopéia dos tempos idos, guarde-as como lembranças. Quem não viu e não viveu, dificilmente verá.

Hoje, sentado no velho moirão da porteira, fecho os olhos e mergulho de vez no mundo sertanejo e começo a ouvir aquela algazarra típica da roça: grilos, sapos, galinhas, vacas mugindo, latidos de cão e até, juro, o gemido de um carro de boi que parece prantear minha inusitada presença. Na estradinha que passava perto da fazenda, a poeira ainda levanta um redemoinho e está tudo como antes. Dava pra ouvir ao longe um barulho de machado cortando lenha, mas não era para abastecer um fogão à lenha, porque hoje lá se usa gás. O cheiro forte de café novo coado, que vem do fogão me cutuca a consciência para lembrar as minhas mãos furtivas à cata de um pão de queijo, de um biscoito ou de uma broa de milho feita pela minha avó Francisca. Naquele tempo na roça a gente não tinha riqueza, mas tinha fartura. Ah, viola, se pudesse crer, ainda a ouço daqui desse moirão da porteira porque seu som ficou impregnado no tempo e trazido pelo vento, e como mexe com a gente, e como me faz bem ouvir os acordes feitos pelas mãos mágicas de vovô Torquato.

É possível ver araras e andorinhas voarem sem sintonia, as garças perderem lugar para os quero-queros e o pica pau nem ouço mais. Mas do moirão, ainda paro para ver um bem-te-vi solitário se acomodar nos galhos secos de uma árvore milenar plantada no quintal que resiste ao tempo; Do moirão, ainda sou capaz de curtir as floradas dos ipês roxos e amarelos que acompanham meu olhar, feito bandeiras desfraldadas que também resistem ao tempo e ao homem. Ainda dá pra ver até um joão-de-barro habitando sua casa que ele construíra num cheiroso pé de jatobá. De tão feliz passei então a torcer pra sua ninhada crescer antes dela cair, mas, pensando bem, a árvore de jatobá é resistente. Enfim, na Fazenda Serra da Urtiga onde a rotina pela sobrevivência nos obriga a viver a vida como ela nos impõe, resta-me trazer à memória o som de uma viola qualquer, porque para mim ele soa como magia, me liberta por algum momento dos grilhões que me prendiam naquele lugar, fazendo com que meu olhar ficasse perdido no nada, mas, felizmente, a minha mente recarregava minha alma com a energia vinda das lembranças e dos bons tempos que deixei para trás.

Antes de escurecer, adentrei-me no velho casarão construído de assoalho de tábuas e puro adobe. Senti meus pés descalços deslizarem sobre o piso frio, os quais traziam uma sensação de saudade mais forte com a que sentia antes, acompanhada de um súbito arrepio prenunciando um início de tristeza ou alegria, que logo espantei com uma cachaça mineira que meu avô sempre guardava na prateleira. Ponho então um disco na vitrola e viajo novamente, só que naquele instante usando as asas da imaginação. Ah, viola, que maneira gostosa você tem de mexer tanto com as pessoas; de nos fazer sentir novamente gente; de nos fazer pequenos frente ao destino, mas grandes quanto ao futuro, mesmo sendo homem simples e sentindo-se o último dos caipiras.

Contrastando com a selva de pedras, onde não se vê nenhum resquício do mundo rural que fazem parte da vida caipira como: as duplas sertanejas, os violeiros, sanfoneiros, foliões, catireiros, boiadeiros, benzedeiras, doceiras e tantos outros personagens de nossa remota identidade interiorana, e do lado de cá, ladeado por uma selva de pedras, ainda é possível ver nos quintais, nas praças e em pequenas chácaras, árvores centenárias, pés de eucaliptos, mangas, jabuticabas e laranjas. Não é exagero meu não! Quanto à música caipira que dominava o rincão sertanejo a modernidade jogou nela uma pá de cal, esvaindo-se com isso o som da viola e hoje se vê predominando o funk ostentação, arrocha e a “sofrência”. Se ainda existir caipira e ele ouvir, pode até chorar, mas jamais terá mala dentro ou fora da casa pra ir embora... E o pior é que esse novo som musical nada mais é que a banalização da mulher, a dor de corno e um incentivo aos bebuns e enaltecimento da manguaça.

Não é o caso de defender uma volta aos velhos tempos. Talvez o esquecimento seja proposital, os tempos antigos eram duros, o trabalho era penoso, e renda das massas de bóias-frias era ínfimo, os meeiros e outros tipos de trabalhadores rurais a sua produção era o grão. É certo que os jovens não aceitam mais. Apenas a necessidade extremada da sobrevivência justifica os suplícios de uma roça. Todavia, os descendentes dos antigos caipiras têm direito a uma vida digna e confortável como qualquer morador de um centro urbano. O que choca é a velocidade e a forma violenta pela qual são tirados os recursos tão preciosos, como os simbolismos de nossa existência, da memória dos antepassados, dos costumes, da cultura sábia, da natureza viva, essas coisas é que davam mais sentido e gosto pela vida, mas, infelizmente, hoje, com todas essas mudanças, podemos dizer que meu avô Torquato foi realmente o último dos caipiras.

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