Epitáfio de um literato

quarta-feira, 1 de agosto de 2018


Certo dia, durante o enterro de um amigo eu fiquei observando uma lápide colocada sobre um túmulo, na qual, para aquele que é um bom entendedor, principalmente quando se trata de coisas misteriosas, havia uma placa de mármore e nela uma frase que homenageava o morto ali sepultado que dizia: “Enfim sóbrio”. Existiam outras frases estranhas, pitorescas, profanas, em outros túmulos, mas que me abstenho de citá-las porque posso transgredir as regras sagradas e falta do devido respeito às coisas divinas. Destarte, muita gente famosa, celebridades e escritores de renome esperam que seus nomes sejam escritos na lápide acompanhados de uma bela frase, sejam ou não citando atos heroicos seus, todavia, com o passar dos tempos frases começaram a serem usadas por toda a população para lembrar as qualidades daquele ente querido que “viajou” para outra dimensão deixando muita saudade.

Ao lado esquerdo do túmulo um homem bem vestido colocava um buquê de flores sobre uma lápide de um parente se, noutra, alguém de vestimenta branca colocava um prato cheio de pedaços de frango ao molho pardo com pequi, junto uma vela e garrafa de pinga. Na lápide estava escrito “Enfim sóbrio”. O homem bem vestido vira para o outro e acreditando tratar-se um absurdo aquilo pergunta: Desculpe a intromissão, mas o senhor acha mesmo que alguém virá comer esse frango e tomar pinga neste local? Olhando de soslaio e meio chateado com a pergunta, o outro responde: Sim, quando alguém de sua família vier cheirar as flores que você está colocando sobre a lápide pode visitar este túmulo pra comer frango e se quiser, pode até tomar uma dose de pinga. E continuou: Eu respeito às opções dos outros e isto eu acho que é uma das maiores virtudes que eu tenho. Quem está enterrado aqui era um parente, gente boa, mas que bebia muito e antes de morrer me pediu que colocasse sobre a lápide uma garrafa de pinga, e sabendo que adorava, coloquei também este prato cheio de coxa de frango, pois pode ser que seu espírito sobrevoe este cemitério e procure alguma coisa pra comer. Na verdade ele gostava bastante de frango ao molho pardo com pequi. Com seu jeito gozador e profano disse que o modo de agir de cada um é diferente, pensa diferente, então não deve julgar o meu ato, apenas tentar compreender. Só lhe digo uma coisa: não é macumba.

A morte é um mistério, mas sempre tem um túmulo esperando por alguém e isso não é mistério pra ninguém. Mesmo que as estações do ano passam, que elas vão e volta, a vida continua se a gente respeitá-la e curtir cada momento. O medo da morte é uma ilusão no peito dos sábios, todavia, em relação a isso prefiro não ser um sábio. Quem vive as estações de forma solene é igual aos que curtem uma vida sem limites, isso eu faço e curto. Eu sempre sonhava ser cantor, um musicista, pois a canção é a imortalidade e as estações permanecem mesmo quando se acaba a alegria e a felicidade.

Observei bastante o diálogo daqueles homens. Pra mim a conversa foi extensa, incompreensível, descabida, feia, profana. Diante daquele ato senti que alguma sou e que ainda me resta um pouco de sobriedade, talvez o bastante para me lembrar dos sonhos e da vontade de viver de um ente querido, literato, que foi chamado de volta pra viver e poetizar em outra dimensão. Olhei para a lápide do amigo e ali estava escrita uma frase que me tocou profundamente que dizia: “Aqui jaz apenas um poeta que pouco escreveu. O silêncio que paira aqui talvez faça parte dele algumas de suas obras inacabadas” Logo abaixo daquela frase a data de seu nascimento e morte.

A saudade devorou-me por alguns minutos como um vapor que leva a última gota que já pertenceu a um oceano, mas não me rendia, estava lá com as minhas orações, mesmo que não viessem a falar mais dele, ainda estarei na terra alimentando-me do que me devora, e quando um dia eu me for deste mundo sei que terei o meu mausoléu e nele gravado, em minha memória um epitáfio qualquer, que aos poucos poderá até cair no esquecimento, mas jamais se findará totalmente, pois, não serei eterno, mas o que restou de mim poderá ser eternizado através da escrita. Quando eu me for, insisto, o tempo encarregará de preparar o meu mausoléu para um próximo, que ocupara o meu vazio e as metades desfeitas que alimentarão dois sentimentos e quiçá, histórias de uma vida que poderão terminar igual a minha...


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