Estupefato
diante da televisão, meus olhos só captavam gente sendo mortas de forma covarde,
bárbara e estúpida, outras feridas por agressões inexplicáveis. Enquanto as
câmaras giravam nervosamente, outras cenas horripilantes iam aparecendo
mostrando enxurrada a entulhar esperanças; ouvia gritos alucinados frente à
enxurrada de mazelas, e sentado no sofá, inquieto, vivo, nem poder fazer nada, pensei:
Estar vivo no mundo de hoje já é milagre e se dermos uma pequena saída do nosso
habitat, ficamos sujeitos a assaltos e até perder a vida caso haja reação de
nossa parte. Há casos de indivíduos que mal atravessa a porta são contaminados
por vírus trazidos pelo vento poluído, outros, recebem uma bala perdida que não
sabem de onde veio, e na primeira esquina, sofre um acidente de trânsito, fica
deficiente ou perde a própria vida. Pode ser um acaso, uma situação inesperada
ou o relógio do destino que parou naquela manhã antes de se recompor naquela
manhã.
Renascer a cada
manhã todos quer. Temer a morte, a segregação do aconchego, o retorno às
cavernas uterinas de mães zelosas todos desejam para que possam recomeçar tudo
de novo. Mas antes do amanhecer pode ser que o sono venha apagar os sentidos, a
consciência, o manuseio das mãos e dificultar ver os olhares afetuosos daqueles
que nos cercam. Confiante de que haveremos de acordar no dia seguinte, nem nos
preocupamos, pois sabemos que vamos receber o mesmo sol. Todos querem despertar
nesse novo amanhã com uma nova visão sobre a vida, na esperança de que sono não
traga traumas. Também dessa letargia que nos acossa, desse propósito de
inconsistência que nos assalta, dessa lúgubre angústia de um quase-andarilho
que, além de quase perder o mapa da vida, quase se perdeu no próprio mapa. Mas,
com relação a mim sei que minhas ranhuras brotam delicados sons de um violino tocando
músicas de Mozart e Chopin. Não sou dado
ao absinto e sei que a vida nada mais é que uma aposta, por isso, todas as minhas
fichas foram postas no tabuleiro dos jogos inúteis dos perdedores. Jogo ao lado
deles mesmo sabendo que não é isto que me interessa e também para não
contrariá-los, pois sei que ao faminto só o pão lhe interessa. De que valem
todos os poderes do mundo se não conseguem encher um prato de comida? De que
valem todos os reinos se não plenificam a alma que está sem nenhum gosto? Sendo
ambientalista e amante da natureza, não engaiolo os pássaros e nem a sua dor
porque os quero vivos, quero vê-los voando em ziguezagues, enrugando ventos,
saltitantes entre a plantação de flores que cultivo em meu jardim íntimo.
Quero-os gorjeando melodias matutinas em variados sons e cheguem adocicados aos
meus ouvidos cansados de ouvir melodias inúteis. Quero-os despertando-me com
seu canto, contudo, sem me provocarem a vertigem das alturas.
Quero, a cada
manhã, renascer para a vida, desmontar a cidadania inelutável, quero
desmitificar a teimosia dos inconformados; extirpar a ociosidade intemporal dos
mendigos; orientar as mulheres condenadas a bordar dores incolores, na
despossuída humilhação dos que clamam por um pedaço de terra e daqueles que vão
às ruas pedir apenas uma casa popular para morar, ou de um direito adquirido
gravado na Constituição. Quero que todos tenham acesso à vida e ela seja
distribuída fartamente como pão amanteigado, o leite e o café quente da manhã,
sem jamais temer as intermitências da morte. Quero um tempo para saborear os
livros como saboreamos uma pipoca ao assistirmos a um filme na TV ou num cinema
qualquer; quero o meu corpo saciado de apetites, a mente livre de despautérios,
o espírito matriculado num corpo de baile palaciano, ao som dos mistérios mais
profundo e lá fora, os pássaros orquestrados pela aurora e os cintilantes raios
de sol que debruçam sobre os rios desnudados pela transparência das águas,
assim como, os pulmões estejam exultantes de ar puro, a boca cheia salivada
para saborear a mesa farta de manjares feitos por mãos mágicas de uma deusa
vinda de outros mares.
Muito bom o texto. Cotidiano. Parabéns.
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