Fortunato e a pinguela.

terça-feira, 19 de maio de 2015


Fortunato era um pequeno agricultor, filho único, solteirão, trabalhador incansável, de boa estatura, olhos azuis, cabelos castanhos emaranhados até os ombros e morava com os pais à beira do Rio Corrente num longínquo rincão do mato grosso goiano. Certo dia, cansado das desventuras, começou meditar sobre como atravessar o rio, já que a única ponte de madeira ficava a cinco quilômetros de sua casa, então, sentou-se à beira de um barranco e começou a pensar... A solução era construir uma pinguela para encurtar o caminho. Do lado de lá, depois de atravessar a densa mata, chegaria mais rápido a igrejinha que em razão da distância participava pouco, e a construção dessa travessia era a solução, pois sabia que encontraria lá a linda jovem, professora, que faziam seus olhos brilharem e o coração bater mais forte. Ela possuía uma silhueta muito elegante, pernas torneadas, cabelos loiros, compridos, e quando a via andar pela estrada de chão sacudindo os cabelos ao vento, esta cena o deixava encantado. E não era miragem. Avexado, nem se atrevia a acenar com as mãos quando deixava a igrejinha, ou mesmo quando passava perto da escola onde ela ministrava aula às crianças do pequeno povoado. Aqueles momentos inusitados mais pareciam um sonho e a construção da pinguela era a única forma de se aproximar mais amiúde dela, de alcançar um sonho, ou talvez, acordar para a vida.

Sabendo que a travessia era insegura e a sensação de não conseguir alcançar a outra margem poderia ser sentida a cada passo, mesmo assim não titubeou, cortou uma enorme árvore que ficava às margens do rio e a ponta cheia de galhos caiu do outro lado. Foi até lá, equilibrando-se no tronco tal qual a um macaco, conseguiu aparar os galhos, tirar as lascas como faz um escultor e ainda amarrar nela umas varas de bambu para ajudar no equilíbrio. Pronto! Estava construída a formosa pinguela. Ficou observando a sua arte, chegou bem perto do barranco, olhou para baixo e sentiu-se como se estivesse num prédio de dois andares e depois, lembrou-se que além do medo de altura sofria de labirintite e ao podar os galhos sentiu isso. Entretanto, para quem sentia medo e não tendo alternativa, se viu obrigado a enfrentar a sensação da travessia, até porque precisava se encontrar com aquela mulher.

Passados alguns anos visitei Fortunato e numa tarde quente de verão, enquanto o sol se escondia no horizonte, fiquei observando atentamente aquela pinguela e aí me veio à mente que a nossa vida está repleta de momentos semelhantes. Muitas vezes somos forçados a atravessar situações difíceis, sem  nenhuma    segurança e equilíbrio. Muitas vezes pensamos até em retroceder ou sentar a margem daquilo que achamos impossível construir. O impossível no mundo de hoje é sobreviver ou viver em linha reta, avançar e superar obstáculos. A menos que a opção seja por não amadurecer e não crescer, mas sabendo que ultrapassar obstáculos faz parte do itinerário de qualquer ser humano. Chegará o dia em que será necessário que levantemos nossos próprios voos e experimentemos novos ares, pois somente consegue sucesso quem  avança independentemente da situação em que se encontram como foi o caso de Fortunato Simão Filho que enfrentou o seu medo e pode alcançar na outra margem o seu grande amor.

Vivemos num mundo de altos e baixos, mesmo para aqueles que se dizem seguros quando chegam ao ponto final.  Na estrada da vida muitas vezes somos quase que obrigados a passar por algumas “pinguelas” que balançam nossa estrutura interior. Damos alguns passos, chegamos a vacilar e muitas vezes nem damos  conta de que não há consistência quanto à direção a ser seguida, não obstante sabermos da necessidade de ir adiante mesmo não tendo toda a certeza e segurança necessárias para alcançar o que almejamos. Quando conseguimos passar pela pinguela da vida e pisar em solo firme é sinal que vencemos os obstáculos, superamos nossas limitações e sentimos mais leves e fortalecidos. A nossa vida é cheia de “pinguelas” e não adianta a gente querer se desviar delas, pois elas surgirão ao seu tempo e quando surgirem, nada de receio e ansiedade, pois, depois do esforço empreendido, vem à alegria de termos conseguido alcançar do lado de lá pessoas que ansiávamos encontrar e hoje a felicidade de tê-las com a gente do lado de cá, como aconteceu com Fortunato.


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