Calou-se uma voz e um som de viola

quarta-feira, 12 de julho de 2017



Tempos idos ouvi a música “Grito de Amor”, cantada pela dupla sertaneja Felipe e Falcão. O som inebriante de suas vozes e viola aguçava meus ouvidos e me fazia ir além de mais além. No moirão da porteira olhava rumo ao horizonte em busca de lembranças, mas lembrar-me de quê se eu era apenas um jovem sonhador. Mas como a uma canoa invisível que desce rio abaixo, naquele dia me fiz invisível também e me acomodei sobre um tronco de madeira para continuar ouvindo outras canções deles através de um CD, e sempre fazia em todos os finais de tarde, depois de um dia exaustivo de trabalho na fazenda Pomares. Como era bom escutar o ponteado da viola, cujo som ao ser levado pelo vento parecia rasgar o céu que cobria aquele pedaço de chão. Apaixonado pela música sertaneja restava-me ficar ali sentado naquele tronco de madeira e apreciar cada nota musical. Era como se estivesse sonhando. Nunca em preocupei em saber o nome verdadeiro de Falcão, o apelido já bastava para mim e talvez, para as andorinhas, bem-te-vis e araras também, que enfileirados, passava ao meu redor em voos rasantes, contentes, como se aquela voz grave de Falcão confortasse a nossa alma. A cada canção  perecia remar com a gente a favor da correnteza da vida e nem sentíamos a existência de águas profundas, mas em certos momentos sentíamos aperreados em face do acúmulo de tantas coisas, talvez mal resolvidas deixadas prá trás, a maioria esquecidas, outras apagadas pela borracha do tempo. 

Dia 18 de setembro de 2017 completará seis anos de sua passagem por este mundo. Ao ouvir “Grito de Amor”, um dos maiores sucessos da dupla, veio à minha mente lembranças do meu conterrâneo Falcão que amou e sempre honrou a cidade de Morrinhos, então, procuro recebê-las igual a uma cachoeira que cai mansa sobre um poço profundo, todavia, memórias não se apagam, ficam gravadas em nosso subconsciente trazendo tudo de volta, sejam boas ou más, e chegam, de uma vez só, restando-me arquivá-las da região recôndita de meu cérebro como se fossem gotas de suor saídas da alma. Ah, que dom e voz tinham Felipe e Falcão! As vozes e o som da viola ecoavam por aquele rincão goiano e se misturava com o canto dos pássaros mexendo tanto com a gente que nem tinha vergonha de ser chamado de caipira. Quem nasceu na roça entende o que falo, então, quanta emoção, quanto sentimento se acoplava na minha retina, que nada mais eram que coisas indeléveis de um homem sonhador. Quantos nós sentia na minha garganta, que nem conseguia desatar, nem subir ou descer, numa mistura de tristeza e alegria que só a saudade é capaz de criar. Dava até para sentir o cheiro da terra, o tênue vento e o toque da textura do chão molhado sob meus pés descalços.

Sabemos que viver como ele viveu nos palcos da vida é somar mais vitórias que derrotas. É ficar inchado de coisas que nos deixam pelo caminho. Raramente, os que morrem assim, são os preferidos de Deus. Morrer assim é como a um ícone romântico que deixa hígida e festiva a imagem do morto, de toda sua vida e do que poderiam ter ocorrido durante sua existência, assim como, todos os sonhos e realizações dele. Na parede do casarão de puro adobe do vovô Torquato um retrato emoldurado de Falcão, de perfil simples, que teve sua vida voltada ao romantismo e era visível observar a mistura de um permanente sorriso celebrando a vida, a juventude e a velhice. Era contagiante ver o seu jeito alegre e a forma de como cantava e compunha suas músicas sertanejas, de como enfrentava o dia a dia, de como encarava as tardes sem o pôr do sol, ou de crepúsculos opacos, avermelhados ou cinzentos. Observei atentamente mais que tudo nas antigas capas de CDs, as defecções, as rugas, mechas de cabelos esbranquiçados, rosto imberbe e a crescente solidão de ver um vídeo noticiando sua morte, um funeral cheio de pessoas que o admirava, cantando o “Hino do Motociclista” de que tanto gostava. Dia 18 de setembro de 2009, depois de um infarto, num leito de hospital em Goiânia, poucos ouviram o último suspiro, calar uma voz, um som de viola e perdermos o último dos românticos da cidade de Pomares.
  
O tempo passou e parece ter sido tão veloz que me restou apenas imaginar se ainda existe aquele tronco de madeira frente ao casarão de meu Avô Torquato e encostado à beira do moirão da porteira. Voltei lá após seis anos e por incrível que pareça ele estava lá intacto. De repente veio o vento e trouxe algumas ondas imaginárias sem me pedir licença. Naquele recanto, imaginei pegar pétalas de rosas no quintal e ver se elas ainda exalavam. Imaginei ver passar por aquele local as marés de incertezas e não ter a mesma reação que tinha no passado. Imaginei encontrar outras estradas e sonhar um sonho que sempre almejei sonhar, mas sabia que não conseguiria sem aquelas canções inebriantes. Imaginei-me numa estrada deserta diante de uma noite pesada demais mesmo sem ter pesadelos. Imaginei lembrar o passado sem assombros. Imaginei, mas preocupei-me porque poderia encontrar essa estrada cheia de escombros. Imaginei perder mais alguém nessa “estrada da vida”, onde já perdi muitos. Imaginei Deus ressuscitando sonhos que perdi. Imaginei a não existência de paraíso nem de inferno. Imaginei não existir pessoas que não lutam por nada e se deixam levar pelo mundo profano. Imaginei alguém dizer: Eu sou um sonhador, porque imaginei estar vivendo num mundo sem ganância, sem fome, sem mortes, sem preconceitos, sem desamor. Imaginei vivendo em irmandade fazendo o bem sem olhar a quem.  Imaginei poder compartilhar tudo o que penso, sem ofender ninguém. Imaginei encontrar a  felicidade e de ter localizado ao longo dessa “estrada” o amor e realizar alguns sonhos, que às vezes, ressuscitados, vêm com pesados pedágios, tributo que a vida nos impõe e que nos dificulta alcançar outros sonhos e objetivos antes de chegar ao ponto final. Imaginei, ah, se imaginei!

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