...eram apenas gestos refletidos na parede.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012


Preguiçosamente apertei a frouxa lâmpada do abajur que perscrutava as sombras dos gestos refletidos nas paredes, mais parecendo seres vivos extraídos de um filme de animação, mais vivos do que jamais refletira. O velho abajur geralmente iluminava debilmente o quarto fazendo a luz branda tornar todos os meus gestos romanticamente surreais. Todavia, de repente, a luz que a muito não acendia tão intensamente, surpreendeu-me com seu poder de claridade. Alguém deve ter substituído à lâmpada de 30 wolts. Os movimentos sombreados na parede começaram a acontecer como a um desenho animado filmado em câmera lenta e em formato de preto e branco. A ação refletida na parede era febril e frenética, mas também estática, bastava ficar quieto. Os gestos de minhas idas e vindas retesavam-se na branca parede do quarto e lutavam para se libertar de um corpo estranho que se movia de um lado para outro e insistia em não liberar meus gestos embutidos naquela cena surreal, mas, fortificados com a presença da luz escaparam do peso daquelas sombras e rejuvenesceu o meu coração que de tanto lutar já gesticulava incólume.

A luz brilhou mais forte e pensei que nunca acabaria. Olhei para um canto vi a cama e berço vazios e sobre a cama e abraçada a um travesseiro, faltava alguém. Com os olhos ainda travados pelo sono, cabelos desalinhados, mãos calejadas de lida rotineira fiquei pasmo e uma saudade abateu-me sobre o peito. Faltava realmente alguém naquele espaço, alguém que ajudou a curar as minhas dores e feridas. Alguém que não reclamava de nada, nem das dores desconfortantes dos seus pés ou dos joelhos, pernas e braços esfoladas de quedas e estripulias que a própria vida gerou Alguém que naquela noite inusitada não pode ver seu rosto ser iluminado pela nova e potente lâmpada do abajur. Esse alguém que se estivesse ali tenho certeza de que a luz mostraria na sua face o dom de me devolver à calma que a vida tantas vezes insistiu em me roubar. Cenas surreais de gestos realmente inusitados refletidos na parede que somente eu tive o privilégio de assistir: um corpo de mulher em movimento coberto por um lençol cheio de contrastes e cores, amparado por um travesseiro de espumas macias que protegia a imagem de uma guerreira. Só podia ser surreal, pois há dias não acendia aquele velho abajur e jamais pensava assistir cenas tão preciosas que minha mente não esquecera e jamais esquecerá. Mas, a saudade é difícil de imaginar mesmo quando se vê apenas gestos. É uma coisa estranha que toma conta da gente, chega sem pedir licença e acontece quando menos imaginamos: saudade do seu cheiro, de uma melodia que curtimos, que nos trás boas recordações, saudade de uma simples palavra, de uma manifestação de amor; saudade daquelas imagens que foram acopladas cotidianamente na região recôndita de meu cérebro, mas, eis que a máquina do tempo surgiu me envolveu e convidou-me a voltar a ser criança. A mulher que se gesticulava nas sombras refletidas na parede soube costurar a vida usando a linha da verdade para que os filhos pudessem construir suas vidas com sobriedade. Alguém que deixou a saudade invadir o meu peito e se transformou numa ponte de concreto e me fez retornar a mim mesmo; uma travessia moldurada de sabedoria, sem empecilhos, onde se vê bordada uma identidade muitas vezes esquecida, perdida na pressa que me levou ou me que deixa levar. Ao olhar para os gestos e falar em saudade dela é dizer o óbvio, é devolução, é ato que restitui o que se parte; é luz que sinaliza o local de nosso porto seguro, é voz mansa no ouvido que nos acalma nas madrugadas de desespero e solidão.  Mas, naquela noite, ao acender a lâmpada do abajur e ver aquelas cenas refletidas na parede não me restou alternativa senão em finalizar este artigo em uma única frase: O poeta tem diante de si vários sentimentos: o real, o palpável, o prático, o surreal, o imaginário, visões fantasiosas, e quando escreve, muitas vezes objetiva levar ao leitor uma mensagem de amor, esperança, fé, e intencionalmente, deixa de dedilhar o teclado do computador e o substitui pela caneta-tinteiro injetando nela a ruborizada tinta de um coração ferido pelo tempo no afã de aferir a sensibilidade de cada um, mormente quando virem perscrutadas as sombras de sua amada e suas refletidas na parede.

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