Preguiçosamente apertei a frouxa
lâmpada do abajur que perscrutava as sombras dos gestos refletidos nas paredes,
mais parecendo seres vivos extraídos de um filme de animação, mais vivos do que
jamais refletira. O velho abajur geralmente iluminava debilmente o quarto
fazendo a luz branda tornar todos os meus gestos romanticamente surreais.
Todavia, de repente, a luz que a muito não acendia tão intensamente, surpreendeu-me
com seu poder de claridade. Alguém deve ter substituído à lâmpada de 30 wolts.
Os movimentos sombreados na parede começaram a acontecer como a um desenho
animado filmado em câmera lenta e em formato de preto e branco. A ação
refletida na parede era febril e frenética, mas também estática, bastava ficar
quieto. Os gestos de minhas idas e vindas retesavam-se na branca parede do
quarto e lutavam para se libertar de um corpo estranho que se movia de um lado
para outro e insistia em não liberar meus gestos embutidos naquela cena
surreal, mas, fortificados com a presença da luz escaparam do peso daquelas
sombras e rejuvenesceu o meu coração que de tanto lutar já gesticulava
incólume.
A luz brilhou mais forte e pensei que nunca acabaria. Olhei
para um canto vi a cama e berço vazios e sobre a cama e abraçada a um
travesseiro, faltava alguém. Com os olhos ainda travados pelo sono, cabelos
desalinhados, mãos calejadas de lida rotineira fiquei pasmo e uma saudade
abateu-me sobre o peito. Faltava realmente alguém naquele espaço, alguém que ajudou
a curar as minhas dores e feridas. Alguém que não reclamava de nada, nem das
dores desconfortantes dos seus pés ou dos joelhos, pernas e braços esfoladas de
quedas e estripulias que a própria vida gerou Alguém que naquela noite
inusitada não pode ver seu rosto ser iluminado pela nova e potente lâmpada do
abajur. Esse alguém que se estivesse ali tenho certeza de que a luz mostraria
na sua face o dom de me devolver à calma que a vida tantas vezes insistiu em me
roubar. Cenas surreais de gestos realmente inusitados refletidos na parede que
somente eu tive o privilégio de assistir: um corpo de mulher em movimento
coberto por um lençol cheio de contrastes e cores, amparado por um travesseiro
de espumas macias que protegia a imagem de uma guerreira. Só podia ser surreal,
pois há dias não acendia aquele velho abajur e jamais pensava assistir cenas tão
preciosas que minha mente não esquecera e jamais esquecerá. Mas, a saudade é
difícil de imaginar mesmo quando se vê apenas gestos. É uma coisa estranha que
toma conta da gente, chega sem pedir licença e acontece quando menos
imaginamos: saudade do seu cheiro, de uma melodia que curtimos, que nos trás
boas recordações, saudade de uma simples palavra, de uma manifestação de amor;
saudade daquelas imagens que foram acopladas cotidianamente na região recôndita
de meu cérebro, mas, eis que a máquina do tempo surgiu me envolveu e
convidou-me a voltar a ser criança. A mulher que se gesticulava nas sombras
refletidas na parede soube costurar a vida usando a linha da verdade para que
os filhos pudessem construir suas vidas com sobriedade. Alguém que deixou a
saudade invadir o meu peito e se transformou numa ponte de concreto e me fez
retornar a mim mesmo; uma travessia moldurada de sabedoria, sem empecilhos,
onde se vê bordada uma identidade muitas vezes esquecida, perdida na pressa que
me levou ou me que deixa levar. Ao olhar para os gestos e falar em saudade dela
é dizer o óbvio, é devolução, é ato que restitui o que se parte; é luz que sinaliza
o local de nosso porto seguro, é voz mansa no ouvido que nos acalma nas
madrugadas de desespero e solidão. Mas,
naquela noite, ao acender a lâmpada do abajur e ver aquelas cenas refletidas na
parede não me restou alternativa senão em finalizar este artigo em uma única
frase: O poeta tem diante de si vários sentimentos: o real, o palpável, o
prático, o surreal, o imaginário, visões fantasiosas, e quando escreve, muitas
vezes objetiva levar ao leitor uma mensagem de amor, esperança, fé, e
intencionalmente, deixa de dedilhar o teclado do computador e o substitui pela
caneta-tinteiro injetando nela a ruborizada tinta de um coração ferido pelo
tempo no afã de aferir a sensibilidade de cada um, mormente quando virem
perscrutadas as sombras de sua amada e suas refletidas na parede.
0 comentários:
Postar um comentário