Todos
sonham possuir um pedaço de chão, mas nem todos conseguem. Desde o
descobrimento do Brasil o índio tinha mais do que possui hoje. Na verdade, quase
não tem mais, pois a civilização avançou demais e foi tomando seus quinhões de
terra selva adentro. Diferentemente desses habitantes de florestas, as pessoas
chamadas por esses selvagens de “caras pálidas” e que vivem noutra selva, a “de
pedras”, construídas pelos seres humanos, muitas se encontram abandonadas nas
ruas, ocupam clandestinamente os espaços públicos e privados, não tem um pedaço
de chão para nele instalar um barraco, por mais simples que for. Uns cem
números de habitantes são desabrigados pelas chuvas, pelos desmoronamentos,
pelos incêndios, por outros eventos e até pela própria ação do homem, os quais,
certamente, desejariam para reconstrução de suas vidas, apenas um pequeno
pedaço de chão, porque para eles, um pedaço de chão é muito mais que ter onde
morar. É ter direito a uma vida mais digna e melhor protegida. É poder plantar sementes
e colher sonhos. Colher sonhos, semear projetos e gerar filhos num solo fértil,
torna-se claro e notório, que tudo se frutificará em coisas prósperas e lhes darão
alegrias no amanhã. Ter um pedaço de chão vai além de abrigar corpos.
Aconchega. Conforta. Até na hora sinistra da morte precisa-se de um pedaço de
chão. E nem nessas horas todos têm o privilégio de adquirir um espaço digno
para sua última morada. Todos querem. Muitos sonham, mas nem todos conseguem um
pedaço de chão...
Quantos parentes, amigos e amigas se foram para outra dimensão. Sábado
findo, na cidade de Goianira, durante o funeral de dona Judite Alexandrina
Carneiro, mãe de Eva, minha secretária do lar, observei que sol queimava
a terra enquanto pequenas nuvens negras iam se formando e retalhava-o naquele
universo
místico, onde, algumas vezes, se eclipsou com coisas surreais, mesmo assim,
resquícios dele teimavam em atravessar entre as impertinentes nuvens a conta
gotas quando estas se descuidavam. Todos naquele campo
santo, cercados lápides e jazigos antigos, nem vislumbravam a magnífica vermelhidão
que pendia no céu como um pingente multicolorido, e sequer entendiam que aquele
sol estava iluminando as pessoas que ali oravam em prol de dona Judite e que, de
alguma forma, aquelas orações eram reabastecidas pelo Espírito Santo, um poder impessoal
que Deus disponibilizou aos seguidores de Cristo.
Disse acima que até na hora sinistra da morte
precisa-se de um pedaço de chão e nem nessas horas todos têm o privilégio de
adquirir um espaço digno para sua última morada. Dai lembrei-me de tantas
pessoas que são desalojadas de suas casas, dos casebres, dos barracos, sem a
menor sensibilidade e amor ao próximo. Com essas nuances, surgiram as
primeiras tentativas de mudança naquela terra que chamo de Reino da Utopia. É como
se ela vibrasse sobre os pés de pessoas insensíveis e entrasse em um novo eixo.
Mas, o tempo não pôde esperar, o sol se foi e veio à escuridão, que desceu
sobre Utopia escurecendo-a sem dó. Era como se lá tudo estivesse protegida por
uma grande placa de aço, escura, pesada, sem fim. As pessoas pareciam acordar
de um sono profundo e algumas sentiram seus corpos convulsionarem-se, retorcerem-se, curvarem-se em choro, expondo o que nem elas mesmas tinham conhecimento, um
lado oculto, mas, felizmente, a escuridão esvaiu-se como num passe de mágica e o
sol tomou o seu lugar para iluminar o caminho daqueles que partiram e partem
para se despertarem em outra dimensão ao lado do Pai Celestial.
Mas, a minha querida
Utopia estava mergulhada em uma maldição indecifrável, o sol vermelho que
beijava a terra, poderoso, magnífico, absoluto e que fazia recair sobre a
cidade fachos de luz únicos, curvou-se diante da noite. Fechada a cortina do
tempo e diante aquela cena de construções devastadas, natureza arruinada e um
vazio supremo, todos pareciam perdidos, cada qual procurando respostas, saídas
daquele pesadelo, mas o que não entendiam é que o Reino da Utopia adormecia
sobre um pedaço de chão, que vagava no espaço celeste, mostrando coisas
mirabolantes, uma cidade efervescente que iluminava todos os covis, que deveríamos
aprender a destrui-los, um a um, e depois, procurar extrair todos os nossos medos
e receios, lutando por uma vida digna e a chance de um dia voltar ao convívio
com os nossos entes queridos. E, quando tocar o sinistro relógio por doze
vezes, anunciando meia-noite e vermos algo se apoderar de Utopia como as estranhas criaturas que saíam de seus
covis e atacar aqueles que ali se acomodavam, havemos de entender que nada mais
é do que um jogo de sobrevivência, por tempo determinado ou talvez, até que aquele
relógio utópico silencie-se diante das intempéries do tempo e ceda um pouco, de
modo que os monstros sumam e cada um de nós possamos despertar do transe, voltarmos
a viver um dia normal e entender que aquele pedaço de chão tão sonhado é apenas
utopia.
Publicado no Diário da Manhã, edição do dia 21 de agosto de 2013.
´mais uma vez vemos a necessidade de adquirir um pedaço de chão ,não no imaginario mas na realidade,porém é muito difícil tomar esta decisão,porque temos tanto da morte?
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