O grito silencioso da primavera.

domingo, 13 de outubro de 2013




Numa certa tarde caminhei por uma estrada que serpenteava no meio das plantações de milho ainda sem pendo e folhas caídas, e depois, mais adiante, me embrenhei por entre um canteiro de flores todas nativas criadas pela própria natureza, esparsas, alinhadas à beira de outra estrada brindada por um pé de Ipê cujas flores transformavam o chão num tapete colorido que resistiam as intempéries do tempo. À medida que a fazendinha ficava mais próxima, a estrada ia se tornando mais retilínea e até certo ponto monótona. Nem o canto dos pássaros se podiam ouvir, pois não existiam árvores, todas foram derrubadas para plantação daquele imenso milharal.  

No silêncio daquelas estradas, alguns transeuntes passavam usando roupas parecidas, com trejeitos iguais, penteados semelhantes, atitudes repetidas e sorrisos melancólicos. Deviam ter saído daquelas palhoças construídas perto de uma mata fechada que deixei para trás. A uniformidade era tanta que me deixava confuso. Uma igualdade unissex que fazia desaparecer o quanto possível a distinção entre homens e mulheres. Pareciam seres de outro planeta, mas não eram, pois alguns usavam chapéu e baforavam ao ar uma fumaça preta que saíam de cigarros de palha.

Não se ouviam cumprimentos entre si, nem conversas, mas não eram mudos. Tentava interpretar cada ação, cada movimento deles, porém, observei que, para eles parecia não existir a manhã, tarde ou noite, mas não eram sonâmbulos e nem robôs. Tinham pernas, braços, um corpo como o nosso, mas, sentia que eram realmente estranhos. Um alô podia servir para qualquer fase do dia ou para qualquer pessoa conhecida, amiga, ou até para os que se viam pela primeira vez, mas, passavam mudos e mudos seguiam seus caminhos.

O trânsito de pessoas, pouco a pouco, foi se acumulando quando cheguei a um cruzamento de estradas vicinais e não era um estrangulamento qualquer. Era muita gente e esquisitas mesmo! Saíam de todos os lados. Algumas se moviam lentamente, outras paravam, e depois, andavam sem compasso, e preguiçosamente, mais adiante, paravam novamente. Aquilo me deixava atônito. Uns iam voltavam levando e trazendo nos braços machados e motosserras. Outros, com trouxas nas costas seguiam sem rumo em busca do improvável. As estradas, ora serpenteadas, ora retilíneas, pareciam ter sido construídas para loucos, mas eu não era louco e o que eu estava fazendo lá? Depois pensei: Poxa!  Esqueci que sou poeta e dizem que todo poeta tem um pouco de louco, ainda mais quando se procura sinais de primavera para captar inspirações e escrever loucuras poéticas. A impaciência buzinava no meu ouvido direito e do outro lado, a outra, talvez mais paciente nem respondesse, mas, as impacientes entraram para tumultuar, até se formar uma zoeira danada de vozes roucas, acompanhadas de sons estridentes de motosserra e berros metálicos que vinham da  única mata sobrevivente.

De repente, silêncio total. Tudo parado. De novo a impaciência nervosa e a paciente protestaram em conjunto. De novo responderam as vozes roucas e os berros metálicos que protestavam e se multiplicavam. Parei. Pensei e lembrei-me de quando era um menino inocente e sonhador, que criava frases às vezes sem nexo, mas, embebido do amor extraído daqueles quintais e campos floridos sequer sabia, que existia entre medo e emoção o gosto do pecado e a certeza da paixão... Lá, eu ouvia às vezes, nas madrugadas silenciosas, o canto de um Curiango, não tão longínquo que era logo respondido por outro. Ora, o outro, então, era um galo que cantava e a quem logo respondia, como num eco, um cocoricó distante, esganiçado e simpático de um galinho novato e aprendiz, que eu chamava de Barnabé. E de novo o silêncio caía sobre a gente como um cobertor macio, o cocoricó..., se esticando, se esticando, perdendo-se num adormecer suave e brumoso em que se misturavam a realidade e o sonho.

Hoje já não há mais galos, nem o barulho do monjolo, nem bramidos de bois ou latidos de cachorros distantes. O vaqueiro e o agregado não deixam. Nem há mais quintais e nos campos não nascem flores. O arado, a sujeira e a praga tomaram conta de tudo. Não se pode mais criar galinhas livres se existir galpões de perus. É proibido e dizem que contaminam. É a liberdade de um galpão e o extermínio de galos e galinhas. O cocoricó também é proibido. Que silêncio! Perdemos a alegria harmoniosa do canto nostálgico de Barnabé! E que suavidade e doçura a sua voz nos acalentava ao amanhecer. Que despertar festivo e triunfante ele nos dava, principalmente naquelas manhãs primaveris.

Como era belo o seu canto rouco que transcendiam o imaginário. Parecia saber colocar cada nota e sabiamente relacionada com outras que repetia com maestria e eco de sua voz cortava o espaço daquele rincão levando saudades e nostalgia a outros recantos. Notas musicais, uma diferente da outra, tudo em ordem, sem cacofonia, sem igualdade.  E por falar em igualdade, também, conclui-se que os homens são assim. É a desigualdade que permite ordená-los e harmonizá-los. Cada pessoa é como uma pequena nota no concerto da humanidade. Cada nota é necessária e tem uma beleza particular. Por menor que ela seja, por menos que ela dure, coopera para a beleza do concerto. Cada homem, por menor que seja, tem uma beleza própria que lhe advém de ser o que ele é, um reflexo, uma imagem de Deus, diferente dos outros.


Esta é a beleza e este valor pessoal que constituem a personalidade e que dão dignidade a cada um. Cada homem é único e tem em sua alma uma beleza própria. E é com essa beleza pessoal e única que cada um contribui para a beleza maior do conjunto, para o grande concerto da humanidade, que Deus compôs com sábia ordenação, com sapiencial desigualdade. Meu Deus! Tenho que deixar esta estrada que não me leva a nada e recordar deste concerto que me traz saudade, do galo Barnabé e da harmonia do seu canto! E que saudades dos ipês multicoloridos, das flores que ornamentavam os quintais, das ribanceiras e dos campos cuidados zelosamente pelos nossos ancestrais. Quando voltarão a cantar os galos, os bem-te-vis, os sabiás..., e ao anoitecer, o curiango, naquele cerrado íngreme? Quando voltará a verdadeira primavera? Quando voltará a se ouvir na terra o concerto da humanidade?

Crônica enviado ao Diário da Manhã para publicação no dia 16 de outubro de 2013.

2 comentários:

  1. Belíssimo texto, bem atualizado no conceito dos dias atuais onde pouco se há nas pessoas que não o egoísmo e a desconfiança, desabituais dos tempos antigos de cadeiras nas calçadas e vizinhos a entrar a noite num frugal bate papo ...
    Parabéns

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