Se
nascermos pobre só há uma solução: trabalhar, trabalhar e trabalhar. E é assim
mesmo se quisermos ter uma vida digna! Temos que ir a busca dela custe o que
custar, mas, sempre dentro da honestidade. Para mim, qualquer trabalho lícito é
decente e nunca tive medo de trabalhar, na verdade, não tinha medo mesmo! Saía exaustivo saía do trabalho, já noite, vencido pelo cansaço e
às vezes nem chegava a ver o pôr do sol. Quanta escuridão numa Goiânia ainda
menina, com ruas quase desertas, a maioria poeirentas, sem a cobertura do
asfalto. Naquele tempo podia-se, tranquilamente, refletir sobre a vida, pensar
em coisas à toa, mas, só pensar.
Anos se
passaram e a cidade cresceu e com ela vieram os problemas normais de uma
metrópole muitas vezes mal administrada. Semana passada, passando por uma
calçada no centro da cidade, onde a escuridão já dominava, olhei para trás e vi,
então, várias pessoas estiradas sobre as calçadas, maltrapilhas, debaixo de uma
marquise, com o corpo e cabeças protegidas por trapos de tecidos, papelões e
jornais. No meio delas um homem franzino, que não consegui ver o seu rosto e
aparentava ter 60 anos, mantinha-se sentado. Era de cor branca, de baixa
estatura, cabelos grisalhos desalinhados, sujos, para não dizer ensebados.
Continuei meu caminho porque meus pensamentos estavam voltados para as contas
que deveria pagar no dia seguinte.
De
repente, tive um sobressalto, algo muito forte, talvez coisa de Deus apoderou-se
de mim. Olhei novamente para aquele amontoado de gente e percebi que ele se
levantara acelerando o passo em minha direção. Assustado, talvez em face da
criminalidade que hoje campeia em nossa cidade, apertei o passo e cruzei a rua naquele
instante iluminada pela lua cheia que se retalhavam entre os galhos das grandes
Mangubas plantadas ao longo da avenida. Aquele homem repetiu meu gesto. Parei
do outro lado da avenida e, novamente, ele o fez igual e ficou estático a
poucos metros de mim. A essa altura, confesso, o meu cérebro começou a
desconfiar e o coração a acelerar. Perguntei a mim mesmo: será que tenho que
começar a correr? Poxa! O que faz o medo. E o pior é que eu estava, sim,
pensando mal do homem, imaginando que ele era um ladrão, assassino em série ou
coisa pior. Não me passou pela cabeça algo mais calmo e nem dava, porque o
homem tinha uma postura assustadora e um cobertor sobre a cabeça. Só podia ser
um morador. Imaginava. E não pegaria bem
correr de uma figura que parecia frágil.
A minha
mente ia e voltava na velocidade da luz. Tinha que pensar rápido, uma saída
honrosa. E foi aí que senti uma lampadinha acender sobre minha cabeça: Heureca!
É isso! Veio-me uma idéia. Coloquei a mão dentro da camisa, simulando possuir uma
arma. O senhor se aproximou mansamente, sem nenhum alarde, agora era a hora de
bancar o valente. Sem pestanejar me aproximei dele e perguntei o que ele queria
de mim e porque me seguia. Naquela hora, confesso, parecia recordar de um filme:
de minha infância sofrida vivida num barraco de periferia, construído de puro
adobe; de minha juventude alicerçada na luta pela sobrevivência; de minha vida
adulta com tantos altos e baixos, e eu com medo de um homem franzino,
maltrapilho, sem endereço, sem nome; Nossa! Em menos de dois segundos eu já me
sentia vagando num mundo surreal enquanto o real estava ali na minha frente,
que, provavelmente, nesse mundo inimaginário, ninguém sabia sequer de nossa
existência. Éramos naquele instante, meras coincidências de um filme de dois
protagonistas, mas sem roteiros. Mas não era hora de escolher o tipo de papo,
pois ao aproximar-me dele, qual foi minha surpresa, senti-me diante de um
moribundo.
Voltei
para a realidade. Felizmente, o homem continuava parado à minha frente, a
poucos metros, mas não via o seu rosto, imagem que fiz questão de cristalizá-la
em minha retina. Fiquei em observando
cada gesto dele e a sua mudez. Tudo me agonizava, me deixa atônito. Em minha
cabeça só passavam coisas como: Rezar. Pedir a Deus que me iluminasse. A voz
presa na garganta queria se soltar, mas não conseguia dada a ansiedade e medo,
talvez. Senti que não tinha forças para correr, ou que uma viatura da polícia,
coincidentemente, passasse por aquele local, ou ainda que o homem sem rosto fosse
abduzido por forças estranhas. Não. Não foi assim. Era apenas um indigente que
queria morrer com dignidade. E ele queria me dizer por que estava ali. Passados
alguns segundos e aparentemente calmo, comecei a observar que não se tratava de
bandido ou usuário de drogas, menos ainda um assassino em série. Aquele homem
que poderia acabar com todos meus planos e projetos de vida era apenas um
morador de rua. Pensava. Jamais imaginava que encontraria alguém daquela
maneira, mas, tudo bem, estava preparado para tudo. Perguntei o seu nome e ele apenas
acenou com uma das mãos e continuou na sua mudez. Só podia ser mesmo um morador
de rua, mas como? Sem rosto? De repente ele tira um pequeno papel da algibeira e
me entrega. Li e não pude acreditar no que tinha lido. Era um convite para a sua
Missa de Sétimo Dia. Como! Missa de Sétimo dia! Senti um calafrio e foram às
últimas frases que pronunciei. Só sei que foi um susto danado que me fez
acordar. Graças a Deus! Era apenas um sonho, mas, talvez, ele queria me mostrar
o quanto a sociedade se faz de cega ao passar por elas, achando que sequer
possuem rostos. O pior cego é aquele que finge não ver o rosto dessas pessoas
abandonadas pela própria sociedade da qual faz parte.
Passado o susto, mas
preocupado, procurei no laptop interpretar o significado daquele sonho. Lá
dizia: boa sorte e felicidade. Mais calmo, levantei-me devagarzinho e nem tinha
observado que debaixo do laptop havia um jornal, o “Diário da Manha”, e nele, estampando na capa, em letras garrafais,
a notícia sobre a morte do senhor Francisco de Jesus, intitulada: “DEFUNTO SEM
DONO. FILHO DE NINGUÉM”, cujos cuidados médicos ele recebera na Casa Matheus
25, e o nome Francisco, lhe fora dado pelo Padre Luiz Augusto para que não
fosse enterrado como indigente. Peguei o jornal e li umas pequenas, mas
importantes frases ditas por ele que devem ser refletidas:
“Mais uma vez, o atropelo da injustiça que impera neste
“nosso” país”. “Durante o tempo em que o Francisco esteve conosco, tentamos
tudo para encontrar sua identidade”. “Sinceramente, é desumano e injusto. Mas
quem é que se importa?”
Muito bom,vou compartilhar.
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