Na janela
do lado de lá tem um poeta. Tem um poeta na janela do lado de cá. Encostado no
tapume da favela tem outro poeta e mais além, outro sentado na escada da subida
do morro. Estão emudecidos. Apenas ouvem ecoarem no morro rajadas de balas
cintilantes que riscam a noite. Alguém tinha um revólver na mão, mas não era o
poeta do lado de lá. A sua única arma era a caneta e na sua intimidade, usava
apenas um calção surrado e estava com o tronco nu exposto aos trópicos. Também
não era o poeta do lado de cá, pois mesmo com os olhos embaçados não o vi
manejar qualquer arma. Observava também que estava desarmado o poeta do tapume
bem como o da escada. Na realidade eles tinham que ficar quietos para não serem
alvejados pelos traficantes ou policiais que subiam o morro. Diante daquele
calor agonizante ouvia outros zumbidos, mas de sexo, cerveja e risadinhas
sarcásticas de bandidos que se escondiam com suas amadas nos becos escuros.
Só não
digo que sou cego, porque tenho dois olhos perfeitamente sãos mesmo usando
óculos de grau. Só que naquele dia da invasão do Morro do Alemão tinha
esquecido o danado sobre a escrivaninha. Sei que vivia num dilema conflituoso…
Meus ouvidos eram aguçados e escutavam passos. Ouvia-os até de muito distante.
Tinha uma boa audição. Mas meus olhos embaçados não podiam ver o que os ouvidos
ouviam… Escutar minhas aflições, meus dilemas, escutar o meu coração a bater,
escutar o meu próprio caminhar. Mas não podia ver nada disso, nem mesmo meus
passos. O engraçado é que não conseguia ver nem a mim mesmo. Pensava: Será que
estava invisível!
As mãos do
poeta da janela do lado de cá tocavam em alguém, seus lábios a beijavam, seu
corpo parecia inebriar. Sentia o vento roçar seus cabelos, mas se ela estava
realmente ao lado dele até seria capaz de sentir, mas não a via. Meus olhos de
poeta estavam embaçados de tal forma que eu não podia ver o mundo com
sentimento de destruição. Contabilizei e cheguei à conclusão de que tinha
captado cinco sentidos: inexatos, confusos, impróprios, relevantes, surpresos…
que me levavam a sentir; sentir apenas o que eu queria e o que eu podia sentir
cujos sentimentos sabiam serem somente meus porque sou ser humano.
O poeta da
janela do lado de lá passou para a janela do lado de cá e os dois se
cumprimentaram e conversaram. Um era esquelético e o outro mais troncudo. Um
vestia calção a camiseta surrada, o outro, calças jeans, mas com o tronco nu
exposto aos trópicos. Da minha janela quase não os via. Os outros poetas
ouvindo tiros subiram a escadaria e juntaram-se aos outros se ajeitando no vão
da janela defrontando-se com policia que subia as escadarias com passos curtos
e cadenciados se esgueirando nas paredes dos casebres. Na janela do lado de cá
parecia que havia uma cumplicidade entre os quatro poetas, como se fossem
executivos em torno de uma mesa. Um parecia brincar com uma arma, fazendo girar
no dedo como naqueles filmes de caubói que ele assistiu, eu assisti e que todos
assistiram. Tentava esfregar meus olhos e o fazia em círculos como fazia e faz
o relojoeiro quando dá corda ao tempo. Rodava. Parava. Rodava como nos filmes.
E, de novo, outro poeta, com a flanela nas mãos, limpava a arma, como a um
experiente zelador que lava e limpa uma vidraça. Da minha janela via aqueles
quatro vultos e á pouco metros de mim cinco policiais. Com os ouvidos aguçados,
dei um passo para trás e entrei no meu casebre. Lá de cima os meus amigos
poetas não podiam ver o que de minha janela repetidamente via. A rigor, nem
olhavam para a favela, que teriam que ver, mas não viam.
Da janela
do meu barraco via outros personagens na cena. Uns subindo e outros descendo
vagarosamente pela escada. Via um ou outro favelado. Um parava, olhava o outro
que estava armado, mas continuava em frente como nada tivesse visto. É coisa
comum na favela. Nada de espanto. Nada constrangimento. Mas ouvia e via algo
mais que eles. Via o vulto de uma criança voltando do colégio. Sentia-a
sorridente mesmo com o sol lhe queimando o rosto. Ouvia-a subir calmamente, e
depois o seu vulto parava diante dos três homens de calção e dorso nu. Dizia
qualquer coisa ao que brincava com a arma como quem podia a bênção ao pai ou
saudava uma linda recepcionista. Olhava a arma como quem via um fruto
amadurecendo. Como quem olhava um instrumento de trabalho de adulto. Com o
mesmo pasmo do filho olhando os objetos usados pelo pai marceneiro.
Da minha
janela agora dou conta que todos somos prisioneiros de nós mesmos. Eu ali na
parte de baixo contemplando de um ângulo os homens seminus, suas armas e nas
janelas lá de cima, num outro ângulo, igualmente agudo, os meus amigos poetas
podiam ver os policiais com armas em punho, intranqüilos, amedrontados. Nós
poetas éramos prisioneiros em cárceres privados diante daquele visual
ante-social, real, pervertido. E a ansiedade não se alojava apenas no ângulo de
meus olhos embaçados, mas de meus amigos também. Olhava o rapaz de calção e sua
arma, como quem olhava qualquer força da natureza. Hoje ou amanhã, à noite, ele
sairá com sua arma, como se fosse normal. Talvez encontre na rua ou numa
travessia escura uma pessoa incauta e lhe abra a cabeça com a bala de sua
fúria. Ele não dará tempo ao infeliz e atirará sem pestanejar ou apenas para
ouvir o gemido do desafeto. Mas se isso vir acontecer com os poetas, comigo,
com você ou com qualquer outra pessoa, não estarão mais aqui aqueles para
contar o acontecido e nem eu terei mais olhos para ver.
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