Olhar de poeta em cárcere privado.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Na janela do lado de lá tem um poeta. Tem um poeta na janela do lado de cá. Encostado no tapume da favela tem outro poeta e mais além, outro sentado na escada da subida do morro. Estão emudecidos. Apenas ouvem ecoarem no morro rajadas de balas cintilantes que riscam a noite. Alguém tinha um revólver na mão, mas não era o poeta do lado de lá. A sua única arma era a caneta e na sua intimidade, usava apenas um calção surrado e estava com o tronco nu exposto aos trópicos. Também não era o poeta do lado de cá, pois mesmo com os olhos embaçados não o vi manejar qualquer arma. Observava também que estava desarmado o poeta do tapume bem como o da escada. Na realidade eles tinham que ficar quietos para não serem alvejados pelos traficantes ou policiais que subiam o morro. Diante daquele calor agonizante ouvia outros zumbidos, mas de sexo, cerveja e risadinhas sarcásticas de bandidos que se escondiam com suas amadas nos becos escuros.

Só não digo que sou cego, porque tenho dois olhos perfeitamente sãos mesmo usando óculos de grau. Só que naquele dia da invasão do Morro do Alemão tinha esquecido o danado sobre a escrivaninha. Sei que vivia num dilema conflituoso… Meus ouvidos eram aguçados e escutavam passos. Ouvia-os até de muito distante. Tinha uma boa audição. Mas meus olhos embaçados não podiam ver o que os ouvidos ouviam… Escutar minhas aflições, meus dilemas, escutar o meu coração a bater, escutar o meu próprio caminhar. Mas não podia ver nada disso, nem mesmo meus passos. O engraçado é que não conseguia ver nem a mim mesmo. Pensava: Será que estava invisível!

As mãos do poeta da janela do lado de cá tocavam em alguém, seus lábios a beijavam, seu corpo parecia inebriar. Sentia o vento roçar seus cabelos, mas se ela estava realmente ao lado dele até seria capaz de sentir, mas não a via. Meus olhos de poeta estavam embaçados de tal forma que eu não podia ver o mundo com sentimento de destruição. Contabilizei e cheguei à conclusão de que tinha captado cinco sentidos: inexatos, confusos, impróprios, relevantes, surpresos… que me levavam a sentir; sentir apenas o que eu queria e o que eu podia sentir cujos sentimentos sabiam serem somente meus porque sou ser humano.

O poeta da janela do lado de lá passou para a janela do lado de cá e os dois se cumprimentaram e conversaram. Um era esquelético e o outro mais troncudo. Um vestia calção a camiseta surrada, o outro, calças jeans, mas com o tronco nu exposto aos trópicos. Da minha janela quase não os via. Os outros poetas ouvindo tiros subiram a escadaria e juntaram-se aos outros se ajeitando no vão da janela defrontando-se com policia que subia as escadarias com passos curtos e cadenciados se esgueirando nas paredes dos casebres. Na janela do lado de cá parecia que havia uma cumplicidade entre os quatro poetas, como se fossem executivos em torno de uma mesa. Um parecia brincar com uma arma, fazendo girar no dedo como naqueles filmes de caubói que ele assistiu, eu assisti e que todos assistiram. Tentava esfregar meus olhos e o fazia em círculos como fazia e faz o relojoeiro quando dá corda ao tempo. Rodava. Parava. Rodava como nos filmes. E, de novo, outro poeta, com a flanela nas mãos, limpava a arma, como a um experiente zelador que lava e limpa uma vidraça. Da minha janela via aqueles quatro vultos e á pouco metros de mim cinco policiais. Com os ouvidos aguçados, dei um passo para trás e entrei no meu casebre. Lá de cima os meus amigos poetas não podiam ver o que de minha janela repetidamente via. A rigor, nem olhavam para a favela, que teriam que ver, mas não viam.

Da janela do meu barraco via outros personagens na cena. Uns subindo e outros descendo vagarosamente pela escada. Via um ou outro favelado. Um parava, olhava o outro que estava armado, mas continuava em frente como nada tivesse visto. É coisa comum na favela. Nada de espanto. Nada constrangimento. Mas ouvia e via algo mais que eles. Via o vulto de uma criança voltando do colégio. Sentia-a sorridente mesmo com o sol lhe queimando o rosto. Ouvia-a subir calmamente, e depois o seu vulto parava diante dos três homens de calção e dorso nu. Dizia qualquer coisa ao que brincava com a arma como quem podia a bênção ao pai ou saudava uma linda recepcionista. Olhava a arma como quem via um fruto amadurecendo. Como quem olhava um instrumento de trabalho de adulto. Com o mesmo pasmo do filho olhando os objetos usados pelo pai marceneiro.

Da minha janela agora dou conta que todos somos prisioneiros de nós mesmos. Eu ali na parte de baixo contemplando de um ângulo os homens seminus, suas armas e nas janelas lá de cima, num outro ângulo, igualmente agudo, os meus amigos poetas podiam ver os policiais com armas em punho, intranqüilos, amedrontados. Nós poetas éramos prisioneiros em cárceres privados diante daquele visual ante-social, real, pervertido. E a ansiedade não se alojava apenas no ângulo de meus olhos embaçados, mas de meus amigos também. Olhava o rapaz de calção e sua arma, como quem olhava qualquer força da natureza. Hoje ou amanhã, à noite, ele sairá com sua arma, como se fosse normal. Talvez encontre na rua ou numa travessia escura uma pessoa incauta e lhe abra a cabeça com a bala de sua fúria. Ele não dará tempo ao infeliz e atirará sem pestanejar ou apenas para ouvir o gemido do desafeto. Mas se isso vir acontecer com os poetas, comigo, com você ou com qualquer outra pessoa, não estarão mais aqui aqueles para contar o acontecido e nem eu terei mais olhos para ver.




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