Mulher Amazona e a Máquina do Tempo

terça-feira, 22 de maio de 2012

Através da janela da alma ela costumava ver chuvas intermitentes deixarem as pastagens e os capins verdes, que se alastravam com uma rapidez impressionante alimentando o gado e trazendo esperança e aspirações aos fazendeiros daquela região. Muitas vezes, ainda com oito anos de idade, montava no cavalo Alecrim e saia a galope para campear gado ao lado de seu pai, e demonstrando destreza com a lida animal, segurava as rédeas e o animal lhe obedecia cegamente; galopava veloz, como a uma amazona; fazia curvas mirabolantes arranhando seu corpo e pés nos galhos das árvores, enquanto as patas do cavalo roçavam a relva úmida que já tomava conta da trilha feita sobre o chão batido. Seus cabelos castanhos e cacheados subiam e desciam com o toque do vento, enquanto o seu olfato recebia e armazenavam perfumes que vinham das flores tão abundantes naquele sertão goiano.


Hoje, ao reprisar aquelas cenas, deparo com um rosto maduro que há décadas entrou na moldura de meus olhos e se estabeleceu, mas que vez ou outra, a antevejo no espelho da vida. Quando adolescente, em razão do trabalho árduo no campo, achava que poderia lhe florescer sobre o corpo formas estabanadas, rudes, masculinizadas, no entanto, a natureza deixou-lhe em torno de si a sensualidade e fez de seus gestos algo sublime; é como o repouso de uma garça sobre o rio; é como o voo alinhado dos pássaros que cortam o céu azul ou de uma pétala de rosa que cai e é levada com suavidade pelo vento.


Mas aquela menina tornou-se adolescente. Largou a pradaria e deixou por lá as rédeas e cordas que ficaram somente na memória, cujos laços, hoje, são apenas imaginários e que só ela é capaz de lançar ao ar em momentos propícios para segurar, frear homens, mulheres e jovens errantes. Menina que também em lágrimas teve que desatar de seu corpo os laços familiares para encarar os estudos numa pequena cidade do interior. Esta pequena amazona que enfrentou um mundo novo, desconhecido, construído por carteiras escolares e uma disciplina medieval imposta por um colégio de freiras de uma cidade interiorana. Menina que continuou desatando os laços que a prendiam por detrás de um muro e, com as bênçãos dos pais, seguiu seu caminho para completar seus estudos e pela estrada de chão, esburacada, pegou o ônibus rumo a Capital em busca de um futuro melhor ou de seu próprio destino. A sorte estava lançada. Menina-adolescente que venceu obstáculos e a solidão imposta pela distância, às vezes amenizada pela presença constante de amigas vindas também do interior. Adolescente que se tornou mulher, namorou, casou e tornou-se boa esposa, mãe e avó. Avó que voltou a ser criança quando pega nos braços os netos, e feliz, rola-se no chão, brinca com coisas infantis, tudo no afã agradá-los e fazê-los rirem de suas palhaçadas. Ao passar pelos canteiros da vida soube regar com águas límpidas as sementes plantadas e a satisfação de vê-las produzir frutos recheados de amor, de moral, de carinho e ainda, de poder deixar nesse canteiro, um pedaço de seu quinhão de vida para ser doado aos menos favorecidos, igualitariamente, de forma que todos, indistintamente, pudessem continuar compartilhando de um mundo melhor e mais humano.


Mulher que mudou para sempre o sentido de minha existência, pois o amor quando é dedicado esmorece qualquer coração teimoso, em especial aquele que durante longos anos desacostumou-se dos aconchegos e, muitas vezes, nem chegou a ter colo. E foi naquele cursinho que iniciamos a jornada que a vida nos imporia. Lá ou fora, durante anos, debruçados sobre livros, cadernos, olhares de soslaios e carícias mais audazes, soubemos administrar diferenças, gosto e estilos. Mas, hoje, quando terminei de escrever o livro de crônicas e poesias que intitulei “Reprisando as páginas da vida”, claro que não poderia deixar incluir nele esta crônica e homenagear a menina amazona que há décadas deixou os laços paternos e não titubeou em aceitar o meu mundo e minha maneira de ser, mas sempre mantendo o equilíbrio, e no rosto angelical e atos, a mantença de uma meiguice racionalmente impossível. Tão doce que constrange minhas amarguras. O seu olhar castanho-claro sempre foi uma flecha extensiva, aquela de longo alcance que outrora vagou pela terra como se fosse um pássaro em busca de sua cara metade, para, num final de ano, em pleno solstício de verão, flechar-me para a eternidade.



Como bom observador, aprendi que a maior parte das lições dadas por ela e que o próprio tempo foi me mostrando paulatinamente, foi à bondade. Vi que cada ato dela planava sereno em suas ações e eu sentia que precisava continuar sendo uma pessoa boa, bom pai, bom marido e avô, leal, responsável, amado, seguro, respeitado e ter sempre Deus no coração, porque sem ELE, tudo se torna mais difícil. Mulher que para mim continua sendo aquela menina amazona, não obstante hoje saiba manusear um computador e a destreza de cavalgar na máquina do tempo, logicamente mais veloz, sem os percalços impostos pelas relvas e curvas. Sem rédeas e apenas com o apertar de um botão, sabe que poderá lançar ao mundo os seus laços repletos de meiguice cujas cordas são adornadas e levadas pelas asas da imaginação. Essas cordas tecidas pelas suas próprias mãos me enlaçam de forma sublime e com o passar do tempo vão se reforçando com as molduras do amor, ternura e sua dedicação peculiar. Mulher guerreira que todos chamam carinhosamente de Maria. 

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