Eram apenas sonhos cotidianos represados.

terça-feira, 13 de agosto de 2013


 

Se eu não fosse uma pessoa estressada por natureza enfrentaria aquele trânsito infernal sem lamúrias. E o pior é que moro apenas três quilômetros do centro da cidade e faço sempre o mesmo percurso todos os dias para chegar ao trabalho, mas, naquele dia, em virtude de uma obra, tive que mudar o trajeto e passar por outro local onde tive o desprazer de deparar com enormes outdoors que mostravam mulheres seminuas e outros, anunciavam aniversário de quinze anos da uma casa de prostituição. Pensei com meus botões: Nestes cartazes deveriam anunciar shows para arrecadação de alimentos para as pessoas que estão passando fome, ou de combate a violência, a drogas e à própria prostituição, e não anúncios oferecendo “serviços” de mulheres, cuja propaganda nada mais é do que uma agressão à família. Estupefato, continuei o meu trajeto e ao chegar ao centro, com o pensamento amalucado, tive dificuldade também de achar um lugar para estacionar o carro. Olhei para o céu e vi que o sol estava bastante declinado com o beiço cheio de fogo que parecia beijar a terra. Para azucrinar mais a minha tolerância, logo atrás do meu veículo, um apressadinho começou a buzinar e abrir a boca cheia de dentes cariados, e com um sorriso sarcástico, gritava palavras grosseiras que tropeçavam em consoantes indecifráveis. Com os nervos à flor da pele, mas tentando manter o pensamento firme, enchi o peito de ar e respirei fundo. Respirei mais uma vez, puxei o ar novamente para dentro dos pulmões e o soltei, depois, fui surpreendido e envolto por um temporal de perdigotos vindos da boca daquele indivíduo que minutos antes fazia de tudo para tirar-me a quietude percutindo sobre meus ouvidos aquela voz estridente e sons que mais pareciam cascos de mulas trotando sobre paralelepípedos. Naquele instante procurava evitar que alguém reparasse a minha ansiedade e também não me tornasse ridículo como a uma carranca de chafariz a cuspir água, num mugido aquático confuso. Olhei para os lados, entrei num pequeno espaço sombreado de uma árvore centenária, manobrei o veículo, balancei a cabeça meio atordoada, emitindo um sinal de sim e não, como se eu estivesse fazendo um resumo daquelas cenas grotescas como forma de reportar nas páginas da vida aqueles gestos vagos. Como a um prisioneiro de palavras complexas desatei o cinto de segurança, peguei a caneta, um pedaço de papel e procurei resumi-la elaborando um texto provável, e sem erguer as sobrancelhas consegui reduzir aquela situação em poucas palavras, e desdenhosamente, encolhi os ombros para não enredar-me numa teia de frases sem nexo.
 
Lembrando daquela língua abarrotada de saliva e de palavras inapropriadas, desci do veículo, ergui os braços desapertei a gravata que sufocava o meu pescoço, peguei o lenço no bolso do paletó e abafei aquelas estranhas gotas de suor, espelhadas, que desciam mansas e penetravam no canto da boca misturando-se ao suco de limão servido por aquele boteco da praça, cujo ato foi presenciado por um par de olhos famintos de um menino de rua, que lacrimejavam dor, lágrimas que desciam devagarzinho pela sua bochecha franzina e que sabia não ter chão para ampará-las, ou talvez, de seus olhos, não saíssem apenas lágrimas.

O sol queimava a lataria do veículo sem dó e o suor, brotava entre as células molhando minha camisa, deixando-me exausto naquele dia em que o povo se movimentava nas ruas comemorando alguma coisa ou manifestando não sei o quê. E as gotas, que hora tornavam-se cintilantes e hora não, mais pareciam obras de ficção e sabiam como escorrer sobre a face e às vezes, eram levadas pelo vento esvaindo-se no espaço sem espatifar-se no chão. O meu corpo em chamas sentia mergulhar em águas profundas enquanto aquela pessoa que esbravejara, coincidentemente, parou o seu carro ao meu lado e nele trazia plotado sobre o capô uma enorme caveira intimidadora,  e aí, sem mais delongas e despistando o acontecimento anterior, perguntou-me o que achava do calor. Notei que se tratava de uma pessoa questionadora e que gostava de esbravejar contra tudo e contra todos, até mesmo contra o tempo que estava realmente abafado e quente. Com a língua em forma de gravata, parecia querer abrir a torneira do tempo para se esconder debaixo de uma água imaginária. Eu, sem medo de procrastinar em lume porque o calor era realmente insuportável que fazia latejar meu cérebro, não dei ouvidos e aquietei-me à sombra daquela árvore, pois quando a gente está feliz nem repara se o calor é proveniente de solstício de inverno ou de verão.

Os meus pensamentos iam e voltavam na velocidade da luz e diante de tantas informações captadas guardadas na região recôndita do meu cérebro não vi alternativa senão ver aquele trânsito caótico modificado e tentar moldá-lo assertivamente orientando que as ações governamentais fossem formadas por um conjunto de procedimentos capazes de assegurar, e desde o início, que se faça um exame sistemático das vias públicas, retiradas de outdoors perniciosos, sincronização de semáforos, não importa em que locais, com propostas e alternativas capazes de provocar resultados satisfatórios e seja apresentada adequadamente aos usuários de veículos, assim como aos não usuários de forma plausível, vez que eu e eles somos e continuaremos sendo o público alvo que motiva e continuarão motivando mudanças, sejam ou não através de manifestações nas ruas. 

Descansado, prossegui, pois o trabalho me esperava. De repente, me vi diante de outros motoristas na mesma situação, um alvoroço total, e aí, não foi possível desviar o olhar e nem escapar dos olhares deles, por mais que tentava. Adentrei ao prédio e apertei o botão do elevador e nada. E o tempo foi passando e nada... Suava bastante e preocupado com as horas mortas apertei novamente o botão. Era como tivesse apertado um acionador de míssil, pois em seguida, não sei como, ocorreu um estrondo ensurdecedor. Assustado, acordei. Atônito, olhei para o lençol amarrotado e travesseiro molhado de suor, e aí, passei a entender claramente que eram apenas sonhos cotidianos que há dias vinham sendo represados em minha mente. 


Publicado no Diário da Manhã, edição do dia 14 de agosto de 2013

1 comentários:

  1. Não raras vezes nos vimos em situações onde o mal e o bem se cruzam, mas, em revoltosos tempos de pura selvageria e atitudes temerárias contra a paz que estamos assistindo na sociedade atual, buscamos refúgio no mais profundo sentimento pacífico e de proteção pessoal. Agora não é mais um caso de polícia, é um caso de vida ou morte. Considerações amigo.

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