Quando vou redigir
qualquer texto costumo manter o dicionário perto de mim e ao escrever uma
palavra diferente e estranha, na dúvida, o consulto. Essas palavras vão se
acumulando em minha memória e de certo modo elas vêm espontaneamente dependendo
do tipo de artigo ou crônica que estou escrevendo. Se considerarmos os estudos
de memória coletiva e do imaginário, estes gestos e posturas são tributos das
estruturas acopladas em nosso cérebro onde sequer imaginamos a capacidade que
temos quando somos engolidos pelo engolidor – o dicionário, que é composto de
milhares de palavras e nos ensina a produzir a escrita perfeita, a fazer e
dizer o correto.
Certa noite, tudo
parecia correr bem até que tive de consultar uma palavra, e logo no início do
alfabeto, mas não sei como aconteceu, pois em questões de segundos me vi
engolido pelo dicionário que abriu um bocão daqueles. Preocupado, haja vista
que estava para finalizar um texto e o meu personagem também estava prestes a
deixar de respirar, pois na cena eu o fazia engolir a própria língua. Meu Deus!
E agora? Estava eu preso, no meio de tantas palavras que compõem a letra “a’ e
por coincidência o meu personagem pedia socorro, só que ele estava lá no fim do
dicionário. Perguntei a mim mesmo: E agora? Como safar-se deste livro ou atravessar
tantas páginas para acudir o meu personagem engasgado?
Pensei: Ah, devo alcançar
primeiro ele e depois safarmos juntos! Mas, o que aconteceria, por exemplo, no
caso de não achar dispositivos susceptíveis em cada letra do alfabeto e
encontrar alguma passagem, alguma brecha, um furinho qualquer entre as letras
para poder passar. Na letra “a’ foi fácil porque encontrei logo a palavra “abertura”
e passei para a letra “b”, que também não foi difícil porque encontrei a
palavra “buraco” e não era assim tão pequeno e passei para a letra “c”. Na
letra “c” fui cavando, cavando... E qual foi minha surpresa: cheguei à danada
letra “d”. Nesta tive dificuldade, passei pela palavra” declive” e parei
defronte a um degrau cheio de destroços e após um breve desabafo, desatei do
dicionário dois dígitos e passei para a letra “e”. Esta já parecia estar num
estuário, escoimando-se de alguma empáfia anterior... Embrenhei-me por essa
letra e fui virando páginas e mais páginas até encontrar a palavra “encaixe” e
poder enfiar meu corpo e escapar para a letra “f”, mas, antes, fugi da palavra “engolida”,
porque, de nada adiantaria aquelas tentativas de fuga. Fui tão sagaz nesta fuga
que já caí direto na letra “g”. Na letra “f”, felizmente tinha a palavra “furo”
e por lá passei tranquilamente.
Esbaforido, parecia
amargar também a língua, mas reconhecia que tinha que salvar aquele personagem
antes de enviar esta malfadada crônica ao jornal. De certo modo sentia que
tinha que continuar a caminhada naquelas páginas mofadas já corroídas pelas
intempéries do tempo e que já estava me dando alergia.
Na letra “g”, de cara
me deparei com a palavra: “gaiato”. Eu me senti realmente um gaiato. Tinha que
dissolver logo essa e as palavras galhofas, gatuna, genética, mas, se pensarmos
bem, na “g” tem a “genial”. E foi aí que apareceu aquela lampadinha sobre minha
cabeça. Para sair dela era só usar a “geometria” e causar um reboliço, um
estrago no meio dela. Heureca! Deu Certo. Consegui localizar a palavra “grota”
calculada matematicamente para fazer cair uma chuva grossa e provocar uma
abertura na sua margem. Na letra “i” tive como orientação e incentivo a palavra
“impulso” e usei como escudo a palavra “imortal”, e sem nenhum incômodo,
incursionei pelo indomável mundo da ineficácia e injetei no interior dela, sem
irritá-las, a inteligência para poder passar por ela. Assim, isento de culpa,
me vi diante da letra “j”.
Quando nos sentimos
presos em nossas próprias palavras e às vezes sem termos condições de nos
manifestar, o argumento que usamos são os subsídios que encontramos no
dicionário, ora responsáveis pelo desenvolvimento intelectual e por essa razão
devem ser gradualmente absorvidos, para não sermos totalmente engolidos por uma
sociedade hipócrita e consumista. Se não conseguirem retirar esta sonda que os
sugam diariamente, de preferência, então, que pesquisem no dicionário e procure
encontrar alguma palavra defensiva ou outros mecanismos de proteção que não os
deixem ser engolidos por essa sociedade.
Deste modo, podemos
evitar as “coceiras” que infestam o nosso País, um grande espaço de terra que
parece o próximo a ser engolido pelos ventos da corrupção generalizada,
afundando-o numa areia movediça, formada de tentação e pecado. Vejam este versículo:
“A mão poderosa e o braço estendido do Senhor (cf Dt 5,15;7, 19; 26, 8)
mostram-se assim em toda a sua força salvífica: o opressor injusto foi derrotado,
engolido pelas águas, enquanto o povo de Deus passa pelo meio para continuar o
seu caminho rumo à liberdade.
Caminhando pela letra “j”
ainda foi difícil minhas mãos alcançar as dele e aí, retornei a caminhada. As
letras em volume gigantesco me confundiam, estavam lisos como sabão e os pés
descalços não podiam pedir ajuda, e naquela página, simplesmente vi que a noite
já havia engolido o dia. Cansado, sem nenhum aparato, descansei alguns minutos
ao lado da palavra “jardim”. Mais à frente, a palavra “jurisprudência” e “justiça”.
E foi com elas que justifiquei a minha situação e como veredicto a minha
passagem para a letra “l”, cheia de labirintos, lápides, larvas, lesmas, mas
felizmente, elas me ajudaram a soletrar e encontrar um levadiço e levitar até
uma loca e alcançar a letra “m”, que sem nenhuma mutação, ainda mostrou-se ser
a força motriz, e aí, usei a palavra “matemática” e fui calculando, calculando...
E sem querer, mas querendo, comecei a navegar, passando por um orifício, e do
outro lado, encontrar uma porta quebrada e outra passagem à frente, já rachada,
e por incrível que pareça, eliminei de uma só vez as letras ”n”, “o” “p”, “q” “r”
e “s” adentrando na letra “t”.
Na letra “t”, de cara,
já levei susto. Fui recebido pelas palavras “trovão”, “tempestade”, “terremoto”,
tufão, terra em transe, que me deixaram tenso, cujo receio me fez chegar à
palavra “túnel”. Adentrei e logo recebi chuvas de palavras e letras que se desprendiam
das páginas e caíam sobre minha cabeça. No fim do túnel, um vulto, talvez fosse
o do meu personagem que acenava freneticamente. De repente, uma escuridão inesperada
e não mais o vi. Novamente um trovão ensurdecedor. Assustado e suando muito,
acordei. Graças a Deus! Era apenas um sonho, mas o incrível é que, ao virar o
rosto no travesseiro amarrotado, observei sobre a mesinha ao lado o meu engolidor,
o dicionário e sobre ele, “O Imortal”, livro de Vanessa Bosso.
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