Engolido pelo dicionário

terça-feira, 12 de novembro de 2013



Quando vou redigir qualquer texto costumo manter o dicionário perto de mim e ao escrever uma palavra diferente e estranha, na dúvida, o consulto. Essas palavras vão se acumulando em minha memória e de certo modo elas vêm espontaneamente dependendo do tipo de artigo ou crônica que estou escrevendo. Se considerarmos os estudos de memória coletiva e do imaginário, estes gestos e posturas são tributos das estruturas acopladas em nosso cérebro onde sequer imaginamos a capacidade que temos quando somos engolidos pelo engolidor – o dicionário, que é composto de milhares de palavras e nos ensina a produzir a escrita perfeita, a fazer e dizer o correto.

Certa noite, tudo parecia correr bem até que tive de consultar uma palavra, e logo no início do alfabeto, mas não sei como aconteceu, pois em questões de segundos me vi engolido pelo dicionário que abriu um bocão daqueles. Preocupado, haja vista que estava para finalizar um texto e o meu personagem também estava prestes a deixar de respirar, pois na cena eu o fazia engolir a própria língua. Meu Deus! E agora? Estava eu preso, no meio de tantas palavras que compõem a letra “a’ e por coincidência o meu personagem pedia socorro, só que ele estava lá no fim do dicionário. Perguntei a mim mesmo: E agora? Como safar-se deste livro ou atravessar tantas páginas para acudir o meu personagem engasgado?

Pensei: Ah, devo alcançar primeiro ele e depois safarmos juntos! Mas, o que aconteceria, por exemplo, no caso de não achar dispositivos susceptíveis em cada letra do alfabeto e encontrar alguma passagem, alguma brecha, um furinho qualquer entre as letras para poder passar. Na letra “a’ foi fácil porque encontrei logo a palavra “abertura” e passei para a letra “b”, que também não foi difícil porque encontrei a palavra “buraco” e não era assim tão pequeno e passei para a letra “c”. Na letra “c” fui cavando, cavando... E qual foi minha surpresa: cheguei à danada letra “d”. Nesta tive dificuldade, passei pela palavra” declive” e parei defronte a um degrau cheio de destroços e após um breve desabafo, desatei do dicionário dois dígitos e passei para a letra “e”. Esta já parecia estar num estuário, escoimando-se de alguma empáfia anterior... Embrenhei-me por essa letra e fui virando páginas e mais páginas até encontrar a palavra “encaixe” e poder enfiar meu corpo e escapar para a letra “f”, mas, antes, fugi da palavra “engolida”, porque, de nada adiantaria aquelas tentativas de fuga. Fui tão sagaz nesta fuga que já caí direto na letra “g”. Na letra “f”, felizmente tinha a palavra “furo” e por lá passei tranquilamente.

Esbaforido, parecia amargar também a língua, mas reconhecia que tinha que salvar aquele personagem antes de enviar esta malfadada crônica ao jornal. De certo modo sentia que tinha que continuar a caminhada naquelas páginas mofadas já corroídas pelas intempéries do tempo e que já estava me dando alergia.

Na letra “g”, de cara me deparei com a palavra: “gaiato”. Eu me senti realmente um gaiato. Tinha que dissolver logo essa e as palavras galhofas, gatuna, genética, mas, se pensarmos bem, na “g” tem a “genial”. E foi aí que apareceu aquela lampadinha sobre minha cabeça. Para sair dela era só usar a “geometria” e causar um reboliço, um estrago no meio dela. Heureca! Deu Certo. Consegui localizar a palavra “grota” calculada matematicamente para fazer cair uma chuva grossa e provocar uma abertura na sua margem. Na letra “i” tive como orientação e incentivo a palavra “impulso” e usei como escudo a palavra “imortal”, e sem nenhum incômodo, incursionei pelo indomável mundo da ineficácia e injetei no interior dela, sem irritá-las, a inteligência para poder passar por ela. Assim, isento de culpa, me vi diante da letra “j”.

Quando nos sentimos presos em nossas próprias palavras e às vezes sem termos condições de nos manifestar, o argumento que usamos são os subsídios que encontramos no dicionário, ora responsáveis pelo desenvolvimento intelectual e por essa razão devem ser gradualmente absorvidos, para não sermos totalmente engolidos por uma sociedade hipócrita e consumista. Se não conseguirem retirar esta sonda que os sugam diariamente, de preferência, então, que pesquisem no dicionário e procure encontrar alguma palavra defensiva ou outros mecanismos de proteção que não os deixem ser engolidos por essa sociedade.

Deste modo, podemos evitar as “coceiras” que infestam o nosso País, um grande espaço de terra que parece o próximo a ser engolido pelos ventos da corrupção generalizada, afundando-o numa areia movediça, formada de tentação e pecado. Vejam este versículo: “A mão poderosa e o braço estendido do Senhor (cf Dt 5,15;7, 19; 26, 8) mostram-se assim em toda a sua força salvífica: o opressor injusto foi derrotado, engolido pelas águas, enquanto o povo de Deus passa pelo meio para continuar o seu caminho rumo à liberdade.

Caminhando pela letra “j” ainda foi difícil minhas mãos alcançar as dele e aí, retornei a caminhada. As letras em volume gigantesco me confundiam, estavam lisos como sabão e os pés descalços não podiam pedir ajuda, e naquela página, simplesmente vi que a noite já havia engolido o dia. Cansado, sem nenhum aparato, descansei alguns minutos ao lado da palavra “jardim”. Mais à frente, a palavra “jurisprudência” e “justiça”. E foi com elas que justifiquei a minha situação e como veredicto a minha passagem para a letra “l”, cheia de labirintos, lápides, larvas, lesmas, mas felizmente, elas me ajudaram a soletrar e encontrar um levadiço e levitar até uma loca e alcançar a letra “m”, que sem nenhuma mutação, ainda mostrou-se ser a força motriz, e aí, usei a palavra “matemática” e fui calculando, calculando... E sem querer, mas querendo, comecei a navegar, passando por um orifício, e do outro lado, encontrar uma porta quebrada e outra passagem à frente, já rachada, e por incrível que pareça, eliminei de uma só vez as letras ”n”, “o” “p”, “q” “r” e “s” adentrando na letra “t”. 

Na letra “t”, de cara, já levei susto. Fui recebido pelas palavras “trovão”, “tempestade”, “terremoto”, tufão, terra em transe, que me deixaram tenso, cujo receio me fez chegar à palavra “túnel”. Adentrei e logo recebi chuvas de palavras e letras que se desprendiam das páginas e caíam sobre minha cabeça. No fim do túnel, um vulto, talvez fosse o do meu personagem que acenava freneticamente. De repente, uma escuridão inesperada e não mais o vi. Novamente um trovão ensurdecedor. Assustado e suando muito, acordei. Graças a Deus! Era apenas um sonho, mas o incrível é que, ao virar o rosto no travesseiro amarrotado, observei sobre a mesinha ao lado o meu engolidor, o dicionário e sobre ele, “O Imortal”, livro de Vanessa Bosso.

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