Permitam-me não revelar a minha idade,
haja vista que os cabelos grisalhos já falam por mim. Para se chegar a ela
podem ter a certeza de que foi dura a minha batalha pela sobrevivência. Foram
altos e baixos, mas tudo que aconteceu de bom ou ruim, me fez crescer
profissionalmente, moralmente e espiritualmente. Esta idade nada tem a ver com
numerologia, mas com sobrevivência mesmo! Devo ter nascido contra a
vontade dos astros na Fazenda São Domingos dos Olhos D’água, município de
Morrinhos conhecida como a cidade dos pomares, lugar aprazível que eu não vi
crescer, pois meu pai João, ainda jovem, aqui faleceu e sem recursos, a minha
mãe Carolina, uma guerreira, que hoje também se encontra em outra dimensão, foi
obrigada a nos levar para Goiânia em busca da tal sobrevivência. Ela pegou um pequeno
ônibus, à época, apelidado de “jardineira”, viajou pela estrada de chão levando
contigo nove filhos, a maioria de menor idade.
Ainda menino naquele ônibus, lembro-me vagamente que estava amparado
pelos seus braços fortes e que deixou a pequena cidade de Morrinhos, em busca
de um novo lar, de uma vida melhor na Capital. Pela estrada de chão,
esburacada, o ônibus seguia célere deixando para trás uma poeira fina que se
esparramava com o auxílio do vento, apagando imagens de um passado como se nela
tivesse impregnada a borracha do tempo e, lá dentro, sacudidos pela trepidação,
outros passageiros também sonhavam com um mundo melhor, mas, receosos de não
conseguirem alcançar o seu intento seguiam silenciosos. Pela fresta da janela
passava o vento e em seu colo sentia a sua pureza de mãe, enquanto sua mente
contabilizava os quilômetros emplacados estrada afora, e de forma sutil, seus
olhos ainda tinham a sensibilidade de contemplar a natureza, cujos vales,
serras e montes iam passando velozmente à medida que o veículo seguia rumo ao
seu destino. O seu semblante jovem transpirava dor e saudade de nosso pai,
ainda jovem, morto de forma trágica, no entanto, mesmo assim, soube manusear as
rédeas do destino, frear e puxar o cabresto que construiu usando cordas
de ternura que acostava aos filhos, para, no momento certo, poder puxar, exigir
ou se recusar, até de forma obstinada, qualquer coisa que lhe contrariasse ou
entristecia seu coração.
Ontem, debruçado na janela, tentava amparar o queixo com as mãos, olhava
o horizonte poente e aguçava os olhos que naquele instante eram a janela de
minha alma que tentavam recuperar a imagem de uma mulher guerreira, que
fora levada pelo tempo, sem motivo, como se fosse uma simples folha seca...
Talvez, seja este o padrão diariamente imposto a elas, mulheres da vida real,
modernas, mas sem realeza, sem personal trainer, sem personal dieter, que à
noite, assim como eu, mesmo com os olhos embaçados, se debruçam na janela, sem
nada a ouvir, sem expressar sorrisos, e se sentem dominadas por um exército de
gente que não as entendem e nem procuram saber que também sonham. Quieto
naquele quadriculado nostálgico e nem um pouco lúdico, nem vi o tempo passar
quando os meus olhos voltaram a se inclinar novamente sobre a janela da minha
alma e enxergarem a poucos metros dali árvores centenárias também debruçarem os
ramos, assim como, ver transformados os cabelos de minha mãe em louras mechas e
o sol e a lua se porem e nascerem soberbos. Mesmo cansados, sei que somente
queriam é que eu vivesse uma existência efêmera, mas encantada... Eu procurava
entender isso e saber que um dia tudo iria extinguir-se, então, não nada mais
me restaria. Todavia, era deslumbrante ver a primavera se antecipar florindo
jardins e os Ipês, cujas flores caíam e deixavam o chão colorido, que minutos
antes, tinha sido molhado por pequenas gotas de chuva rapidamente secadas em
face escaldante sol que já se despedia detrás da selva de prédios.
Quando nasci, de forma irônica, a
parteira que me ajudou a vir ao mundo, devia ser uma distraída, mas, de certo
modo, possuidora de um espírito crítico iluminado, pois disse no momento que
nasci que eu era bonitão. Era 03 de fevereiro de 1949. Nascia mais um
aquariano. Mas, para receber uma mísera herança, me emanciparam, e hoje consta
na minha Certidão de Nascimento o ano de 1948. Um ano a mais, mas, é como outro
qualquer, tanto é que, às vezes, nem importo, pois muitos dizem que nem
aparento ter esta idade. Cresci sem bolo, sem vela de aniversário, sem
pedidos, sem brinquedos e durante muito tempo o travesseiro foi meu melhor
amigo. Ele era triste também. Aprendi a conversar com ele e dizer a verdade.
Mentir não é coisa minha. Sem sono passei muitas noites contando carneirinhos e
no mundo dos sonhos me tornei um dos maiores produtores desses animais, que
guardava com carinho nos currais da vida que construía a cada sonho. Tinha
certas noites que contava de três em três dada à quantidade que se acumulava
nas minhas insônias. Quando conseguia dormir, doía, assim como a vida. Demorei
a gostar de viver e tinha uma tristeza que me visitava até mesmo nos dias de
alegria. Por conta disso, aprendi a sorrir com economia, mas quando me permitia
sorrir, sorria com vontade, e por conta de minha tenra idade, alguns dentes me
abandonaram, então, deixei para rir somente quando estava diante do espelho.
Gostava de ver a “janelinha” entre os dentes. Quando meu pai morreu não tinha
nem cinco anos de idade e o seu corpo estirado no chão naquela manhã fatídica
diziam que tinha sido eliminado por um fio de alta tensão. Era pequeno demais
para entender aquela cena e compreensível os fantasmas não me perseguirem e não
quererem me adotar. Achei esquisito como a morte se apresentou para mim pela
primeira vez, daquele modo, ainda criança, de forma tão violenta. Naquela época
não morria tanta gente assim, eletrocutadas.
Já em Goiânia, vi o asfalto chegar
tatuando as ruas poentas e com pés descalços, gostava de empurrar sobre elas um
carrinho de madeira que carregava esterco, ou uma tabuinha com furinhos cheios
de pirulitos que vendia para ajudar no sustento da família, mas, rindo como se
fosse feliz, como se fosse outro qualquer. Não sei por que, mas o carinho do
vento que cortava as ruas amenizava o meu coração-menino e me deixava besta. Um
ser vivente, livre como a um pássaro e voava em busca do imaginário, de sonhos
talvez impossíveis. Certo dia, cansado das bolinhas de gude, das fincas, das
bolas feitas de meia que recheava de palhas de arroz e de empinar pipas em dias
sem vento, uma maçã do amor que mordi num parque de diversão, lambeu meus
beiços e chegou ao coração. Achei que estava doente. Tão desacostumado com a
alegria, chorei de felicidade. Lágrimas doces. Não é coisa de poeta, eram doces
mesmo! Naquele dia até meu travesseiro chorou e molhou o lençol branco onde fiz
questão de derramar junto delas as minhas, que desciam mansas pela minha face.
Foi a primeira vez que me senti um “bitelão”. Não lembro mais do rosto dela,
mas sei que sua boca era perfeita demais e tinha os dentes branquinhos como
algodão.
Ainda pequeno, com uma caixa de
engraxar sapatos, comecei a trabalhar. Toda vez que passava pelo portão nem
percebia a tristeza fazendo sombra no meu sol. Ele, antes de entregar a noite à
lua, me ensinava o valor da liberdade, da honradez e honestidade. Era viciado em
livros infantis, gibi, revistas em quadrinhos e em certos momentos eu parecia
fugir das galés. Cada remada nas páginas da vida, mais gibis, mais livros, mais
revistas. Em cada um ou uma, descobria continentes, astros, ídolos, atores,
autores, heróis, gentes diferentes, importantes que me faziam sonhar. Aprendi a
conhecer os oceanos, a amar o mundo e achar atalhos para o coração sem me
tornar moleque ou escravo de ninguém. No meu primeiro livro já corroído pelas
intempéries do tempo, tentei construir nele um sonho, sem saber que tinha, em
seguida, outros, que por mais singelos que foram, sei que ensinaram pessoas a
gostarem de leitura e poesia. Eu gostava e gosto de escrever, divulgar e botar
fogo no pavio para incendiar mentes preguiçosas. Pessoas que não liam agora
começa a ler. Tem gente que voltou a estudar só para aprender a escrever
publicar artigos e poesias em jornais. Voltei a sorrir no lugar que me fazia chorar. Outro dia
até cantei, desafinado, fiz graça da desgraça alheia embutindo nela frases poéticas.
Tem dia que tudo é poesia. Engraçado, de tanto escrever e tentar levar
mensagens a cada um, indistintamente, acabo fazendo essas pessoas felizes.
Certo dia estava sorrindo distraidamente e uma pessoa me perguntou por quê?
Naquele dia fiquei sem entender, agora eu sei. O amor de minha mulher, dos
filhos, noras, genro, netos e netas me deixam feliz. Dificilmente a gente se dá
conta do sorriso de uma criança, do voo bisonho de uma garça ou da graça de uma
borboleta, do perfume de uma flor, do canto de um pássaro, do doce de uma
fruta; não percebemos a perfeição, o espírito revolucionário e aventureiro da
juventude, quando todas as utopias eram possíveis assim como a maravilha e o
esplendor da criação de Deus.
Durante a minha caminhada, ao
ouvir os desabafos de toda espécie, restou-me sentir na profundeza da
alma que o ser humano está acéfalo e em face dessa acefalia moral da sociedade
tento compreender a minha própria história: eu era um menino pobre, pés descalços,
que percorreu ruas poentas e engraxava sapatos para sobreviver e, nas andanças,
procurava buscar aquilo que muitos não tiveram e foram negados pela sociedade:
uma família, um lar, mesmo humilde, mas de verdade. Naquele casebre, entre
os desabafos, senti que a fome batia à porta do estômago de uma criança
vizinha, com a boca seca, pele encardida, lábios rachados, desnutrida e
o corpo todo reagia conforme as variações da velocidade de um móvel da unidade
do tempo; ele olhava a prateleira e nada via; nada que podia suprir a dor
imposta pela fome. Outro menino, menos franzino, de
olhos castanhos arregalados, saiu para a rua e se encontrou com
outros na mesma situação. Formou-se um bando e a cidade trancou suas
portas com medo do absurdo, esta mesma cidade que viu e vê tudo sem
levantar o bastão que tem poderes de abrir portas e nelas colocar o amor e a
dignidade. São contrastes absurdos que a gente assiste na vida
real.
Sei que a felicidade tem dívidas em
relação a mim, por isso não faz mais do que a obrigação de me manter alegre,
satisfeito e ser solidário. Mesmo feliz muitas vezes fico revoltado, mas sei
que isto faz parte do ser humano. Como hoje, onde estou sendo agraciado por esta
Academia. Há datas que sempre farão parte de minha história. Por exemplo: O
cantor Wando morreu no mesmo dia em que fui internado. Não tive medo. Por
coincidência, o procedimento cirúrgico foi o mesmo. Eu gostava das músicas e do
jeitão que ele cantava. Noutro exemplo, eu sabia dançar bem, era um “pé de
valsa” agora... Perdi o jeitão, as pernas não obedecem como antigamente, mas,
pelos menos, a minha mente continua boa para remoer lembranças. Faço
aniversário em época de calor. Em pleno verão. Por isso careço do sopro dos
ventos para amenizar a estrada da minha vida e estes mesmos ventos, inspiro
para dentro do meu peito para abafar o calor do coração. Não sei quem me disse
que estou ficando velho, desconfio que seja o contrário, pois me sinto apenas
mais experiente. Apesar dos cabelos que começam a embranquecer estou aprendendo
a ser jovem, mas quando corro, é claro, não dá para disfarçar que passei dos
sessenta, mas, mesmo assim, quero ter a sabedoria de um ancião, a maturidade de
um adulto, o espírito de um adolescente, ver o mundo com os olhos de uma
criança, ser feliz, rir de tudo e até de mim mesmo.
De vez em quando eu fico rindo sem saber por que. Um riso espontâneo, sem
malícia. Deve ser riso represado. Rir é da hora. Agora que acostumei ando
esperto, controlo o riso. O destino não é confiável como não são confiáveis
muitas pessoas que recebem nossos risos. Gosto de rir com amigos e amigas. E
falando neles, tenho muitos. Amigos são pessoas que a gente escolhe para sorrir
com a gente. Pode até chorar, mas tem que rir também. Descobri com o tempo que
amigos amparam, estão com a gente para o que “der e vier”, por isso, queria
agradecê-los hoje por me receber efetivamente nesta Academia, onde assumo, como
muita honra a cadeira n.º 15 que pertencia ao saudoso escritor José Flausino
Sobrinho e tinha como patrono, o saudoso professor, ex-deputado Estadual,
Federal, e ex-presidente da Academia Goiana de Letras, o escritor Pedro Celestino
da Silva Filho, ou simplesmente, Celestino Filho.
parabéns pelo trabalho que tanto engrandece a cultura do povo Goiano ...
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