Texto do discurso – Posse na Academia Morrinhense de letras

domingo, 10 de novembro de 2013



Permitam-me não revelar a minha idade, haja vista que os cabelos grisalhos já falam por mim. Para se chegar a ela podem ter a certeza de que foi dura a minha batalha pela sobrevivência. Foram altos e baixos, mas tudo que aconteceu de bom ou ruim, me fez crescer profissionalmente, moralmente e espiritualmente. Esta idade nada tem a ver com numerologia, mas com sobrevivência mesmo! Devo ter nascido contra a vontade dos astros na Fazenda São Domingos dos Olhos D’água, município de Morrinhos conhecida como a cidade dos pomares, lugar aprazível que eu não vi crescer, pois meu pai João, ainda jovem, aqui faleceu e sem recursos, a minha mãe Carolina, uma guerreira, que hoje também se encontra em outra dimensão, foi obrigada a nos levar para Goiânia em busca da tal sobrevivência. Ela pegou um pequeno ônibus, à época, apelidado de “jardineira”, viajou pela estrada de chão levando contigo nove filhos, a maioria de menor idade. 

Ainda menino naquele ônibus, lembro-me vagamente que estava amparado pelos seus braços fortes e que deixou a pequena cidade de Morrinhos, em busca de um novo lar, de uma vida melhor na Capital. Pela estrada de chão, esburacada, o ônibus seguia célere deixando para trás uma poeira fina que se esparramava com o auxílio do vento, apagando imagens de um passado como se nela tivesse impregnada a borracha do tempo e, lá dentro, sacudidos pela trepidação, outros passageiros também sonhavam com um mundo melhor, mas, receosos de não conseguirem alcançar o seu intento seguiam silenciosos. Pela fresta da janela passava o vento e em seu colo sentia a sua pureza de mãe, enquanto sua mente contabilizava os quilômetros emplacados estrada afora, e de forma sutil, seus olhos ainda tinham a sensibilidade de contemplar a natureza, cujos vales, serras e montes iam passando velozmente à medida que o veículo seguia rumo ao seu destino. O seu semblante jovem transpirava dor e saudade de nosso pai, ainda jovem, morto de forma trágica, no entanto, mesmo assim, soube manusear as rédeas do destino, frear e puxar  o cabresto que construiu usando cordas de ternura que acostava aos filhos, para, no momento certo, poder puxar, exigir ou se recusar, até de forma obstinada, qualquer coisa que lhe contrariasse ou entristecia seu coração.

Naquele ônibus, antes de afundar no seu mar de sonhos sabia que mais adiante, mesmo sem teto, não poderia se curvar diante das adversidades que surgiriam, pois teria que sustentar e agasalhar nove filhos,   talvez, fazendo faxinas em residências ou usando os carrinhos de madeira para buscar peças de roupas em bairros distantes, lavá-las no tanque da integridade e pendurá-las no varal da vida sob um sol escaldante. Tempo em que talvez não tenha contabilizado; tempo que lhe consumiu o corpo e fez aparecer os   primeiros cabelos brancos protagonizados por este mesmo tempo.

Ontem, debruçado na janela, tentava amparar o queixo com as mãos, olhava o horizonte poente e aguçava os olhos que naquele instante eram a janela de minha alma que tentavam recuperar a  imagem de uma mulher guerreira, que fora levada pelo tempo, sem motivo, como se fosse uma simples folha seca... Talvez, seja este o padrão diariamente imposto a elas, mulheres da vida real, modernas, mas sem realeza, sem personal trainer, sem personal dieter, que à noite, assim como eu, mesmo com os olhos embaçados, se debruçam na janela, sem nada a ouvir, sem expressar sorrisos, e se sentem dominadas por um exército de gente que não as entendem e nem procuram saber que também sonham. Quieto naquele quadriculado nostálgico e nem um pouco lúdico, nem vi o tempo passar quando os meus olhos voltaram a se inclinar novamente sobre a janela da minha alma e enxergarem a poucos metros dali árvores centenárias também debruçarem os ramos, assim como, ver transformados os cabelos de minha mãe em louras mechas e o sol e a lua se porem e nascerem soberbos. Mesmo cansados, sei que somente queriam é que eu vivesse uma existência efêmera, mas encantada... Eu procurava entender isso e saber que um dia tudo iria extinguir-se, então, não nada mais me restaria. Todavia, era deslumbrante ver a primavera se antecipar florindo jardins e os Ipês, cujas flores caíam e deixavam o chão colorido, que minutos antes, tinha sido molhado por pequenas gotas de chuva rapidamente secadas em face escaldante sol que já se despedia detrás da selva de prédios. 

Quando nasci, de forma irônica, a parteira que me ajudou a vir ao mundo, devia ser uma distraída, mas, de certo modo, possuidora de um espírito crítico iluminado, pois disse no momento que nasci que eu era bonitão. Era 03 de fevereiro de 1949. Nascia mais um aquariano. Mas, para receber uma mísera herança, me emanciparam, e hoje consta na minha Certidão de Nascimento o ano de 1948. Um ano a mais, mas, é como outro qualquer, tanto é que, às vezes, nem importo, pois muitos dizem que nem aparento ter esta idade. Cresci sem bolo, sem vela de aniversário, sem pedidos, sem brinquedos e durante muito tempo o travesseiro foi meu melhor amigo. Ele era triste também. Aprendi a conversar com ele e dizer a verdade. Mentir não é coisa minha. Sem sono passei muitas noites contando carneirinhos e no mundo dos sonhos me tornei um dos maiores produtores desses animais, que guardava com carinho nos currais da vida que construía a cada sonho. Tinha certas noites que contava de três em três dada à quantidade que se acumulava nas minhas insônias. Quando conseguia dormir, doía, assim como a vida. Demorei a gostar de viver e tinha uma tristeza que me visitava até mesmo nos dias de alegria. Por conta disso, aprendi a sorrir com economia, mas quando me permitia sorrir, sorria com vontade, e por conta de minha tenra idade, alguns dentes me abandonaram, então, deixei para rir somente quando estava diante do espelho. Gostava de ver a “janelinha” entre os dentes. Quando meu pai morreu não tinha nem cinco anos de idade e o seu corpo estirado no chão naquela manhã fatídica diziam que tinha sido eliminado por um fio de alta tensão. Era pequeno demais para entender aquela cena e compreensível os fantasmas não me perseguirem e não quererem me adotar. Achei esquisito como a morte se apresentou para mim pela primeira vez, daquele modo, ainda criança, de forma tão violenta. Naquela época não morria tanta gente assim, eletrocutadas. 

Já em Goiânia, vi o asfalto chegar tatuando as ruas poentas e com pés descalços, gostava de empurrar sobre elas um carrinho de madeira que carregava esterco, ou uma tabuinha com furinhos cheios de pirulitos que vendia para ajudar no sustento da família, mas, rindo como se fosse feliz, como se fosse outro qualquer. Não sei por que, mas o carinho do vento que cortava as ruas amenizava o meu coração-menino e me deixava besta. Um ser vivente, livre como a um pássaro e voava em busca do imaginário, de sonhos talvez impossíveis. Certo dia, cansado das bolinhas de gude, das fincas, das bolas feitas de meia que recheava de palhas de arroz e de empinar pipas em dias sem vento, uma maçã do amor que mordi num parque de diversão, lambeu meus beiços e chegou ao coração. Achei que estava doente. Tão desacostumado com a alegria, chorei de felicidade. Lágrimas doces. Não é coisa de poeta, eram doces mesmo! Naquele dia até meu travesseiro chorou e molhou o lençol branco onde fiz questão de derramar junto delas as minhas, que desciam mansas pela minha face. Foi a primeira vez que me senti um “bitelão”. Não lembro mais do rosto dela, mas sei que sua boca era perfeita demais e tinha os dentes branquinhos como algodão.

Ainda pequeno, com uma caixa de engraxar sapatos, comecei a trabalhar. Toda vez que passava pelo portão nem percebia a tristeza fazendo sombra no meu sol. Ele, antes de entregar a noite à lua, me ensinava o valor da liberdade, da honradez e honestidade. Era viciado em livros infantis, gibi, revistas em quadrinhos e em certos momentos eu parecia fugir das galés. Cada remada nas páginas da vida, mais gibis, mais livros, mais revistas. Em cada um ou uma, descobria continentes, astros, ídolos, atores, autores, heróis, gentes diferentes, importantes que me faziam sonhar. Aprendi a conhecer os oceanos, a amar o mundo e achar atalhos para o coração sem me tornar moleque ou escravo de ninguém. No meu primeiro livro já corroído pelas intempéries do tempo, tentei construir nele um sonho, sem saber que tinha, em seguida, outros, que por mais singelos que foram, sei que ensinaram pessoas a gostarem de leitura e poesia. Eu gostava e gosto de escrever, divulgar e botar fogo no pavio para incendiar mentes preguiçosas. Pessoas que não liam agora começa a ler. Tem gente que voltou a estudar só para aprender a escrever publicar artigos e poesias em jornais.  Voltei a sorrir no lugar que me fazia chorar. Outro dia até cantei, desafinado, fiz graça da desgraça alheia embutindo nela frases poéticas. Tem dia que tudo é poesia. Engraçado, de tanto escrever e tentar levar mensagens a cada um, indistintamente, acabo fazendo essas pessoas felizes. Certo dia estava sorrindo distraidamente e uma pessoa me perguntou por quê? Naquele dia fiquei sem entender, agora eu sei. O amor de minha mulher, dos filhos, noras, genro, netos e netas me deixam feliz. Dificilmente a gente se dá conta do sorriso de uma criança, do voo bisonho de uma garça ou da graça de uma borboleta, do perfume de uma flor, do canto de um pássaro, do doce de uma fruta; não percebemos a perfeição, o espírito revolucionário e aventureiro da juventude, quando todas as utopias eram possíveis assim como a maravilha e o esplendor da criação de Deus.

Durante a minha caminhada, ao ouvir os desabafos de toda espécie, restou-me sentir na profundeza da alma que o ser humano está acéfalo e em face dessa acefalia moral da sociedade tento compreender a minha própria história: eu era um menino pobre, pés descalços, que percorreu ruas poentas e engraxava sapatos para sobreviver e, nas andanças, procurava buscar aquilo que muitos não tiveram e foram negados pela sociedade: uma família, um lar, mesmo humilde, mas de verdade. Naquele casebre, entre os desabafos, senti que a fome batia à porta do estômago de uma criança vizinha, com a  boca seca, pele encardida, lábios rachados,  desnutrida e o corpo todo reagia conforme as variações da velocidade de um móvel da unidade do tempo; ele olhava a prateleira e nada via; nada que podia suprir a dor imposta pela fome. Outro menino, menos franzino, de olhos castanhos arregalados, saiu para a rua e se encontrou com outros na mesma situação. Formou-se um bando e a cidade trancou suas portas com medo do absurdo, esta mesma cidade que viu e vê tudo sem levantar o bastão que tem poderes de abrir portas e nelas colocar o amor e a dignidade.  São contrastes absurdos que a gente assiste na vida real. 

Sei que a felicidade tem dívidas em relação a mim, por isso não faz mais do que a obrigação de me manter alegre, satisfeito e ser solidário. Mesmo feliz muitas vezes fico revoltado, mas sei que isto faz parte do ser humano. Como hoje, onde estou sendo agraciado por esta Academia. Há datas que sempre farão parte de minha história. Por exemplo: O cantor Wando morreu no mesmo dia em que fui internado. Não tive medo. Por coincidência, o procedimento cirúrgico foi o mesmo. Eu gostava das músicas e do jeitão que ele cantava. Noutro exemplo, eu sabia dançar bem, era um “pé de valsa” agora... Perdi o jeitão, as pernas não obedecem como antigamente, mas, pelos menos, a minha mente continua boa para remoer lembranças. Faço aniversário em época de calor. Em pleno verão. Por isso careço do sopro dos ventos para amenizar a estrada da minha vida e estes mesmos ventos, inspiro para dentro do meu peito para abafar o calor do coração. Não sei quem me disse que estou ficando velho, desconfio que seja o contrário, pois me sinto apenas mais experiente. Apesar dos cabelos que começam a embranquecer estou aprendendo a ser jovem, mas quando corro, é claro, não dá para disfarçar que passei dos sessenta, mas, mesmo assim, quero ter a sabedoria de um ancião, a maturidade de um adulto, o espírito de um adolescente, ver o mundo com os olhos de uma criança, ser feliz, rir de tudo e até de mim mesmo.

De vez em quando eu fico rindo sem saber por que. Um riso espontâneo, sem malícia. Deve ser riso represado. Rir é da hora. Agora que acostumei ando esperto, controlo o riso. O destino não é confiável como não são confiáveis muitas pessoas que recebem nossos risos. Gosto de rir com amigos e amigas. E falando neles, tenho muitos. Amigos são pessoas que a gente escolhe para sorrir com a gente. Pode até chorar, mas tem que rir também. Descobri com o tempo que amigos amparam, estão com a gente para o que “der e vier”, por isso, queria agradecê-los hoje por me receber efetivamente nesta Academia, onde assumo, como muita honra a cadeira n.º 15 que pertencia ao saudoso escritor José Flausino Sobrinho e tinha como patrono, o saudoso professor, ex-deputado Estadual, Federal, e ex-presidente da Academia Goiana de Letras, o escritor Pedro Celestino da Silva Filho, ou simplesmente, Celestino Filho.
Ontem, levantei preocupado em face da responsabilidade que iria assumir nesta Academia de Letras de minha bela cidade de Morrinhos.  Esta preocupação eu destaco, às vezes, pela falta tempo porque são muitas as minhas atribuições diárias, e por mais que tento controlá-lo ele não sobra. Da Capital Goiânia até esta minha cidade natal rasguei o asfalto e consumi a quilometram em menos de duas horas, e neste local aprazível sempre senti um aconchego, em suma, eu me dou bem, mas acredito secretamente que com o tempo fui conquistando-a e sendo conquistado, mesmo sabendo que não posso provar isso, só gosto de pensar assim, afinal, esse danado do tempo já conhecia meus horários, minhas obrigações profissionais e sociais, assim como, a minha cara de choro quando adentro esta cidade e logo me vejo diante do Cristo Redentor de braços abertos a me recepcionar. A emoção da chegada me faz explodir em lágrimas porque ELE faz lembrar-me de meu falecido pai e ao descer do veículo sempre me sinto como a um espírito e percebo que para mim ele não morreu e continua impregnando seu amor em meu coração, e por instantes, descubro que esta deve ser, sem a menor dúvida, a melhor coisa a acontecer a alguém (mesmo que este alguém seja um espírito...).
Vou parar por aqui, o texto já está meio sem nexo e um pouco esquisito,  pode ser que algumas penas sapientes tenham se soltado das asas de minha imaginação quando redigia causando estragos às minhas idéias, fato que, talvez, me fez extrapolar o limite e cansar os ouvidos de vocês que me honram com suas presenças e dos mestres acadêmicos que hoje me empossam nesta  augusta Academia Morrinhense de Letras.

1 comentários:

  1. parabéns pelo trabalho que tanto engrandece a cultura do povo Goiano ...

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