Quero que fique
bem claro que eu não pretendo falar aqui dos oráculos, dos místicos que na
trilha do silêncio percorrem a busca de Deus. Nem me interessa neste momento
citar poderes mágicos, meditações e seitas. Também não quero questionar aqui, o
silêncio, ausência de sons, que podem representar emoções, sentimentos,
desagrados ou introspecções.
O que escrevo aqui aconteceu numa tarde fria, antes do sol de pôr. E
foi naquela tarde que caminhei por uma estrada que serpenteava no meio das
plantações de milho ainda com pendo dando, e mais adiante, me embrenhar por
entre um canteiro de flores nativas criadas pela própria natureza, todas esparsas,
que se alinhava à beira de estrada de chão batido, e no meio do roseiral, um pé
de Ipê cujas flores caiam sobre a relva formando um tapete colorido que
resistiam as intempéries do tempo. À medida que o Parque das Emas ia se
aproximando, observei que a estrada se tornava mais retilínea, deixando de ser
monótona. Já se ouvia o canto dos pássaros, um bando de araras que passavam
voando alinhadas emitindo gritos roucos, enquanto as emas com suas pernas
longas se assustavam com o ronco dos motores saindo em desabaladas carreiras
cortando o capim seco que já era visível naquele belo Parque Ambiental.
No silêncio
daquelas estradas, em pleno inverno onde a natureza parecia oprimida, alguns animais
passavam sorrateiros, uns se arrastavam lentos pelo chão, outros velozes, mas todos
com trejeitos e trotões diferentes, sem atitudes repetidas, demonstrando certo medo
da presença dos humanos que visitavam o Parque. Alguns animais pereciam ter
vindo de uma mata distante, de um brejal, de um buraco, ou das cercanias de uma
serra que meus olhos conseguiam ver bem distante. A quantidade de animais solto
naquelas pradarias era tanta que me deixava boquiaberto. Fora do alcance da visão deles tentava interpretar
cada ação, cada movimento, porém, era fácil compreender que para eles não
existiam dia, noite, sol, frio, ontem ou amanhã, e não eram sonâmbulos, nem
robôs. Tinham pernas, braços, corpo cheio de pelos e penas, e nem eram
estranhos para nós. Estavam sob a nossa proteção naquele parque de preservação
ambiental. Um grito podia ecoar pelos campos e assustá-los ou até para aqueles que
viam o ser humano pela primeira vez, mas, por incrível que pareça, alguns
animais passavam perto das pessoas se fazendo de surdos e surdos seguiam seus
caminhos. Conheciam o seu habitat.
O trânsito de
pessoas, pouco a pouco, foi se acumulando e quando cheguei a um cruzamento de
estradas vicinais aí vi que a coisa piorou! Não era um estrangulamento
qualquer. Era muita gente e esquisitas mesmo! Saíam de todos os lados. Algumas
se moviam lentamente, outras paravam, e depois, andavam sem compasso, e
preguiçosamente, mais adiante, paravam novamente. Aquilo me deixava atônito. Uns
iam e voltavam levando e trazendo nos braços espingardas, machados e
motosserras. Outros, com trouxas nas costas seguiam sem rumo naquelas pradarias
em busca do improvável. As estradas, ora serpenteadas, ora retilíneas, pareciam
ter sido construídas para loucos, mas eu não era louco e o que eu estava
fazendo lá? Será que estava sonhando? E era um sonho mesmo, pois acordei em
sobressaltos. Então, se tudo eram apenas sonhos o fato é que tive de acalmar
meu coração com um gole d’água. E foi aí que me lembrei de minha alma de poeta
e dizem que todo poeta tem um pouco de louco, ainda mais quando se procura sinais
primaveris em épocas de inverno para captar inspirações para escrever loucuras
poéticas. Mas antes que eu acordasse daquele sonho, observei que a impaciência
continuava a buzinar no meu ouvido direito e o esquerdo que era mais paciente,
nem respondia, mas, as loucuras impacientes entraram em confronto para tumultuar
transformando numa zoeira danada, misturando vozes humanas com os sons
estridentes de tiros, barulhos de motosserra e berros metálicos que vinham da
única mata sobrevivente que se avivou no meu sonho naquela noite fatídica.
Com o coração
batendo mais compassadamente levantei-me devagarzinho e me postei diante do
monitor. Comecei a escrever, amparado por um silêncio total. Lembrei-me dos
momentos em que visitei aquela região onde deparava com imensas queimadas e
terras totalmente devastadas pelos arados. Mas hoje, vivendo no mundo real
senti a impaciência nervosa e a quase paciente protestarem em conjunto, porque
a natureza está em perigo constante. E aí forcei a minha memória e captei de
meu subconsciente alguns flashes daquele sonho. Seguidamente vieram as vozes
roucas daqueles seres humanos esquisitos, os tiros, golpes de machado e os
berros metálicos que se multiplicavam. Parei. Dei uma pausa. Lembrei-me de
quando era um menino inocente e sonhador, que criava frases às vezes sem nexo,
mas, quando embebido de amor extraído dos quintais cheio de flores e frutos,
sequer sabia que existia entre o medo e emoção, o gosto do pecado e a certeza
da paixão... No meu recanto nostálgico, eu ouvia às vezes, nas tardes
silenciosas, o canto de um Curiango vindo do pé da serra, não tão longínquo que
era logo respondido por outro. Ora, o outro, então, era um galo que cantava e a
quem logo respondia, como num eco, um cocoricó distante, esganiçado e simpático
de um galinho novato e aprendiz, que eu o chamava de Barnabé. E de novo o
silêncio caía sobre a gente como um cobertor macio, o cocoricó..., se esticando,
se esticando, perdendo-se num adormecer suave e brumoso em que se misturavam a
realidade e o sonho.
Hoje a mãe natureza está triste, já não há mais galos, nem regos d’água para embalar o monjolo, nem
bramidos de bois ou latidos de cachorros distantes. Nem há mais quintais e nos
campos não nascem flores. Que silêncio! Perdemos a alegria harmoniosa do canto
nostálgico dos bem-te-vis, do rouco canto das araras, dos sabiás... E que
suavidade e doçura a sua voz me acalentava ao amanhecer. Que despertar festivo
e triunfante eles me davam, principalmente naquelas manhãs primaveris. O canto
rouco ou nostálgico, não importa de qual ave seja, transcendia o imaginário.
Parecia saber colocar cada nota e sabiamente relacionada com outras que repetia
com maestria e o eco de sua voz cortava o espaço daquele rincão levando
saudades e nostalgia a outros recantos. Notas musicais, uma diferente da outra,
tudo em ordem, sem cacofonia, sem igualdade.
E por falar em igualdade, também, conclui-se que os homens são assim. É
a desigualdade que permite ordená-los e harmonizá-los. Cada pessoa é como uma
pequena nota no concerto da humanidade. Cada nota é necessária e tem uma beleza
particular. Por menor que ela seja, por menos que ela dure, coopera para a
beleza do concerto. Cada homem, por menor que seja, tem uma beleza própria que
lhe advém de ser o que ele é, um reflexo, uma imagem de Deus, diferente dos
outros. Cada homem é único e tem em sua alma uma beleza própria. E é com essa
beleza pessoal e única que cada um contribui para a beleza maior do conjunto,
para o grande concerto da humanidade, que Deus compôs com sábia ordenação, com
sapiencial desigualdade. Meu Deus! Tenho que deixar esta estrada que corta o
Parque das Emas, que felizmente hoje protege a fauna e flora e me faz recordar
de um concerto de outrora que me traz saudade: a voz do galo Barnabé, o canto das
seriemas, dos bem-te-vis, dos sabiás e das harmonias do seu canto! E que
saudades dos ipês coloridos, das flores que ornamentavam os quintais, das
ribanceiras verdejantes e dos campos zelosamente cuidado pelos nossos
ancestrais. Quando voltarão a cantar os galos, os bem-te-vis, os sabiás..., e
ao anoitecer, o curiango, naquele cerrado íngreme? Quando voltará tudo isso?
Quando voltará a se ouvir na terra o concerto humanístico da humanidad
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