Retrato do Abandono

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Olhei rumo à janela e vi penetrar por entre o vão resquícios de luz do sol que    penetrava entre as cortinas brancas despedindo-se do quarto frio. Algo inesperado aconteceu e deixou-me estupefato. Uma coisa surreal. Foi como se eu estivesse vivenciando o aparecimento de uma força invisível, talvez almas penadas vindas de outra dimensão, incompreensíveis à sensibilidade humana, que se aproximaram como que querendo demarcar naquele espaço mórbido uma peça teatral, onde  entre utópicos e poesias cheias de falta de amor alguém ainda encenava naquele palco da vida o último ato e o menino de rua era o personagem principal.

Olho fixo, semblante preocupado comecei a analisar a situações que ele deve ter passado durante os seus minguados anos de vida, dos maus tratos recebidos durante sua existência e pelas implacáveis intempé-ries do tempo que lhe deixou marcas no rosto, maltrapilho, calça caída sobre a bunda, corpo franzino corroído pelo uso de drogas e a cola que cheirava para enganar a fome, outras vezes, era alimentado apenas pela ilusão dos desejos mal contidos, que lhe trazia a dor e decepções sofridas no dia-a-dia. Os conselhos e esforços empreendidos pelos familiares e amigos não o sensibilizava. As drogas e as más companhias eram mais fortes e o fazia seguir o caminho do mal. O seu semblante, quando recebia     migalhas de pão e pequenos afagos de transeuntes tornava-se angelical e até abria o seu coração para falar dos pequenos sonhos e daquilo que almejava conquistar, mas a droga sempre o tirava do caminho da retidão desviando-o para um caminho sem volta.

Quantas ruas e becos ele percorreu para se saciar-se da cocaína.  Saber que pessoas não paravam para   escutar  os seus anseios e que, levadas pelos ventos da insolência sequer se solidarizavam, outras,       viravam as costas e sequer lhe estendiam as mãos.  Mesmo assim, dotado de uma força incomum e   equilíbrio no trato com as pessoas não esmorecia, e deitado debaixo das marquises, tentava, ante ao seu infortúnio, procurar entender o porquê quando as pessoas passavam pela calçada parecerem perdidas, e ao querer se aproximar, ficavam  sempre com medo de encará-lo. Jamais souberam o que ele fazia para sobreviver às noites sombrias e à solidão.

Com o pensamento absorto e olhos tristes voltados para um ponto qualquer do quarto, lembrei-me do último suspiro do jovem Tição, como era chamado pelos outros meninos de rua. De repente uma espécie de gelo revirou o meu ser e os meus pensamentos tentaram se aflorar na região recôndita de meu cérebro no afã de me tornar um testemunho do amor que ele, antes de se drogar, dedicou à família, e por outro lado, tentar entender o motivo de sua peregrinação pelo mundo das drogas, pois possuía boas condições financeiras e tinha um mundo brilhante à sua volta. Hoje, ao dedilhar o teclado do computador e embasado numa análise fria constatei que enquanto alguns meninos enrijeceram a musculatura do coração com o temor travado de emoções impacientes, outros, como o Tição, sequer aceitaram enxergar a nobreza dos laços verdadeiros que jamais iria desfazer-se diante dele que, antes de se drogar, procurou  caminhar com dignidade pela estrada da vida e que de modo algum merecia estar ali , inerte, abandona-do pela sociedade, sem expirar seus últimos sentimentos, enquanto o corpo jazia estirado sobre o chão poeirento e frio de um beco. 

VANDERLAN DOMINGOS DE SOUZA é advogado, escritor, ambien-talista. Presidente da ONG Visão Ambiental e diretor da UBE - União Brasileira dos Escritores. Email: vdelon@hotmail.com e vanderlan.48@gmail.com

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